Foi essa a primeira vez que vi o homem sorridente, vestido com bombachas e turbante, que se apresentava como uma personagem tirade de um romance de Salgari:
- Bom dia. Chamo-me Simpah e sei fazer tudo.
Faltava-nos um electricista a bordo, e quando o capitão o informou de que todos os tripulantes eram voluntários, de tal modo que não era muito o que se lhe podia pagar para dar uma vista de olhos às máquinas, respondeu que o dinheiro não lhe interessava. Dava-se por satisfeito se o deixássemos no próximo porto de destino.
- Assim me aproximarei mais do paraíso – disse ele.
- Como é o paraíso? – perguntou alguém.
- Bastante triste. Mas eu sou feliz por lá – respondeu. [...]
Num dos meus sonhos de infância, Sandokan ficou seriamente ferido depois de enfrentar uns negreiros holandeses e o muy leal Yañez não estava com ele. Mas estava eu, aflito ao pé do herói caído, e, lutando contra as lágrimas, perguntei ao Tigre da Malásia, que é que devia fazer.
- Procurar Yañez. Põe a embarcação a todo o pano rumo a Madagáscar – respondeu-me ele.
Muito tempo mais tarde, em 1984, encontrava-me eu em Moçambique, e tornei a ter o mesmo sonho num quarto do Hotel Sevilha, em Maputo.
[...]Uma noite, numa taberna de Tamarave, comecei a preocupar-me porque não tinha encontrado a mínima pista de Yañez, de tal modo que, para pensar melhor, emborquei uns copos do bom rum da ilha e fumei um desses charutos a que as mulheres dão forma fazendo-os rolar pelas coxas generosas. De repente, sem dar por isso, as minhas mãos uniram-se ao rítmico tamborilar dos dedos nas mesas, e deixei-me levar pelos contadores de histórias que falam de dias muito distantes, de uma liberdade arrebatada por negreiros franceses e holandeses, de uma Polinésia a que os malgaxes regressam todas as noites, na alucinada barca do tabaco e do rum, na mesma barca infinita dos sonhos onde por fim encontrei Yañez, e soube por ele que Sandokan estava bem, muito bem, recuperado e pronto para os novos combates, porque as feridas dos heróis da literatura são rapidamente curadas com o bálsamo da leitura.
As fotos são de Gregory Colbert, e os excertos são de As Rosas de Atacama, de Luís Sepúlveda, leitura a que regresso sempre que quero sentir a poesia de outras vidas. Sempre que quero sentir a solidariedade a correr solta pelas linhas. Sempre que quero ler sonho e liberdade