Novos Voos - Take Two

quinta-feira, outubro 26, 2006
A vida como ela é - IV
0000 Virar de costas

A fagulha que deu origem à implosão daquela célula semi-familiar, saltou numa tarde ardente de Agosto, daquelas tardes em que a simples aproximação de dois corpos pode fazer grassar uma fogueira que a ambos consumirá.
Carlos ainda hoje se interroga intimamente, se, de forma inconsciente, não terá ele provocado o encontro. Não iria encontrar Julia em casa. Sabia-o, ela avisara-o, mas ele estranhamente omitira a si próprio a informação. A rapariga, modesta costureira mas talentosa, tanto que o patrão, um dos melhores alfaiates da capital, a remunerava acima da média, iria entregar alguns pares de calças acabadas de executar, e no entanto, apesar da ausência anunciada, ele, às 3 da tarde como o habitual, batia à porta do nº 10 do estreito pátio.
Conforme o esperado, franqueou-lhe a entrada Aurora, que usava um vestido leve que lhe acentuava as curvas que ele tanto apreciava. O peito que parecia saltar do decote, mexia sempre com ele. Entrou dando-lhe saudando-a timidamente, respondendo-lhe ela, esboçando um sorriso mas quase sem o olhar. E enquanto ele se sentava na cadeira oferecida, ela voltou-lhe as costas e debruçou-se para apanhar algo que ele não conseguiu vislumbrar o que seria. O que soube logo foi que aquela perspectiva das suas ancas proporcionadas, a saia que com a inclinação do corpo, subia e lhe deixava à vista as coxas morenas, era uma tentação que não conseguia negar. E, apesar de vagamente constrangido, chegou-se a ela e pousou-lhe as mãos pela altura dos rins. Sabia que ali chegado, o difícil seria recuar, mas não tinha tal intenção. Sabiam ambos que tinham aguardado por aquele momento desde que se tinham visto pela primeira vez. Tinham pois a ocasião e o tempo que procuravam, e ela, quase sem trocarem palavra, deixou-se cair de costas sobre a mesa, erguendo as pernas, e fincando os calcanhares nos rebordos, puxou-o a si.
Diz-me Carlos que não sabe quanto tempo demorou aquele confronto quase animal, se breves segundos, se muitos minutos como parecia denunciar o suor que lhe escorria por todo o corpo, quando se compôs e saiu a porta. Cá fora, aguardava-o o ar quente, que mais contribuiu para lhe adensar o mal estar que sentia. Carlos, embora no que diz respeito àqueles pecadilhos, como lhe chamava, não fosse muito escrupuloso, sentiu que dessa vez tinha extravasado. Ele, a quem circunstâncias semelhantes serviriam para elevar o ego de macho, nesse dia sentiu pela primeira vez sobre si, o adensar de um sentimento de culpa e um imediato remorso. Não por ele ou por Aurora, que como adivinhara há muito, levara o facto como a simples satisfação de uma necessidade física, mas pela ausente Julia. Sabia que a rapariga há muito que deixara de ser para ele só mais uma conquista, e que para ela, ele que sempre dissimulara bem as suas fraquezas, era o príncipe perfeito.
Apreensivo, voltou para casa, esperando que a noite lhe trouxesse paz, mas ao contrário, subsistiu a insónia. A serenidade que aquela relação parecia transmitir-lhe a princípio, tornara-se, com o cruzar de paixões, numa fonte inesperada de inquietação que lhe era totalmente estranha.
Até então, a sua vida decorrera sem sobressaltos, fugia a compromissos, e os seus namoros, se assim lhes podia chamar, eram fortuitos e breves e agora sentia que tudo aquilo ia contra tudo o que sempre determinara para si.
E se a noite não foi boa companhia, temia ainda mais o dia seguinte

Foto de Kasia Krynska

Escrito por: VdeAlmeida, em 10/26/2006 03:41:00 da tarde | Permalink | | ( 1)Comentários
terça-feira, outubro 10, 2006
A vida como ela é - III
000000001 Gato


Da parte de Julia, o sentimento brotou incontrolável. Tinha sido como um raio, a paixão que aquele homem tão diferente de todos os que faziam parte do seu círculo de vida, com o seu cheiro a colónia fina e a tabaco caro, lhe fizera crescer no peito. A atracção foi imediata, e a sua ingenuidade fez o resto. Ela, menina, aceitou feliz a dádiva do destino e entregou-se sem medos.
Carlos era definitivamente e nas diversas vertentes da vida, um pragmático. Ou, pelo menos, fazia um esforço por sê-lo. “Toda a gente sabe que o cérebro se deve sempre sobrepor ao coração, isto sendo verdade que fosse o coração determinante em mais alguma função vital, que não o bombear de sangue para todo o corpo, inclusive o cérebro”, costumava reflectir. Na dele, considerava que dar confiança aos impulsos sentimentais, era passo para um sofrimento indesejado.
Assim, estava fora de todos os seus planos, envolver-se sentimentalmente com quem quer que fosse, ou mais precisamente, que num eventual envolvimento amoroso, nunca haveria da sua parte qualquer investimento. Isto, até ao dia em que conheceu Júlia. Nessa altura, começou a ponderar uma reavaliação dos seus conceitos.
Só aquela presença morna, o olhar tímido, quase envergonhado, era suficiente para lhe acelerar o coração, e se não era amor o que sentia, então certamente aquele, seria um sentimento que jamais sentiria. De certo modo, sentiu-se grato por a vida lhe contrariar a linha de rumo que traçara. E na primeira noite em que a apertara nos braços, uma noite cálida em que o luar intenso irrompia pela janela e atravessava os cortinados leves e transparentes, iluminando-lhes os corpos e fazendo-os parecer sombras chinesas movendo-se num ritmo lento, teve a certeza que se a felicidade existia, ela estava ali deitada junto a si.
E no entanto, havia uma sombra que não se lhe apagava do olhar, e que resistia ao cerrar das pálpebras provocado pelo sono e o cansaço.

Foto de Kasia Krynski

Escrito por: VdeAlmeida, em 10/10/2006 03:23:00 da tarde | Permalink | | ( 2)Comentários
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