Novos Voos - Take Two

sexta-feira, abril 22, 2005
Um violino no céu

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Desci as escadas do passagem subterrânea que também serve o metro, a duas e duas, como é meu costume, não que fosse com pressa, mas é um hábito que ganhei com o meu pai, este de andar sempre na rua depressa, subir e descer as escadas rapidamente. É quase uma mania, e por vezes um pouco irritante para quem caminha a meu lado.
Quando imergi no túnel, chegaram-me aos ouvidos uns acordes de violino. Pareceu-me o instrumento razoavelmente bem tocado, embora não sendo um expert sou um apaixonado pela música, sei alguma coisa, não sou duro de ouvido, e apercebo-me bem de notas dissonantes.
Fiquei com curiosidade em saber quem tocava assim o Air on a string, de Bach, uma ária que me emociona sempre. E e alarguei o passo.
Quando passei o pequeno cotovelo a meio do túnel, vi que o violonista era um homem de idade avançada, tratado como muitos na minha cidade. Mal. Tinha aquele aspecto sujo de quem não tem sítio certo onde dormir, a barba crescida, as unhas compridas e os dedos amarelados, indicio de que se tratava de um fumador. As roupas condiziam com o aspecto geral
De aspecto impecável, só o violino. Ao tocá-lo, via-se que lhe tinha amor, segurava nele com um cuidado quase exagerado, e ao lado, depositada em cima de um pano branco, a caixa que lhe servia de cofre.
Aquele homem amava o seu violino e à música que ele lhe oferecia, como a uma amante.
*****
Lembrei-me de ti, de como se perdiam as minhas pequenas mãos nas tuas, enormes na minha perspectiva de criança, e me puxavas nas manhãs frescas de domingo mal a Primavera se anunciava e levavas até ao coreto do Jardim da Estrela, a ver a banda da Guarda tocar.
Eu de calções pelo joelho e tu de fato de domingo, sempre impecavelmente vincado, como se fosses para uma recepção de gala, o lenço garrido, a condizer com a gravata contrastante com o branco imaculado da camisa, a sair do bolso de cima do casaco.
E o cheiro a loção, na pele acabada de escanhoar. Nunca me esqueci do cheiro da tua loção, por isso gosto tanto de violetas...
Chegados, estacavas, viravas-te para mim e com um dedo espetado junto aos lábios, pedias-me para permanecer em silêncio. Obedecia-te sempre. Tinha-te um respeito só comparado com o que tinha ao meu pai.
Nos primeiros tempos, de quando em quando, distraía-me, fugia-me o olhar para ti.
*****
Tinhas uma figura que exercia um fascínio extraordinário sobre mim. Talvez da neve intensamente branca que te cobria a cabeça. Talvez do bigode imponente, da mesma cor do cabelo, de guias apontadas para cima. Recordo-me sempre do ritual de domingo de manhã, quando após a barba feita, aquecias o pequeno alicate de pontas finas e obrigavas o bigode a tomar aquela forma. Quanto orgulho tinhas naquele bigode e como eu gostava dele. Nunca consegui apagar a tristeza que foi ver-te no hospital sem ele, poucos dias antes de partires para sempre. Senti-te no olhar, manso, quase já sem chama, que a tua mágoa era, justificadamente, maior que a minha.
*****
Com a mão, voltavas-me a cabeça em direcção à banda, obrigando-me a prestar atenção. E sussurravas que aqueles homens mereciam silêncio e respeito.
E eu obedecia, escutava os músicos, e comecei a gostar. E nunca nada mais me fez distrair.
*****
Foi assim que começou uma ligação apaixonada de muitos anos com a música.
Curiosamente, nunca me decidi a aprender a tocar qualquer instrumento, apesar dos apelos serem constantes. Mas a minha reconhecida falta de talento para trabalhos que requeressem perícia manual, obstaram sempre a que a tal me atrevesse.
Contudo, não consigo passar indiferente por alguém que dedica a sua vida a uma arte que me dá tantos momentos de indizível prazer. Muito menos, se esse alguém tem a música como amante e como meio de sobrevivência.

P.S.- Não sei o que há para além do que conhecemos. Mas tenho esperança que um dia possamos os dois, novamente, assistir a um concerto dado por uma banda qualquer.

Escrito por: VdeAlmeida, em 4/22/2005 04:28:00 da tarde | Permalink | |


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