Novos Voos - Take Two

quarta-feira, abril 27, 2005
Adolescência - III

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A noite fora mal dormida. A perspectiva do encontro eminente com a Marília deixara-me acelerado demais e estranhara a cama. Estava desejoso que despontasse o dia, e logo que os primeiros e tímidos raios de sol me surgiram à janela, levantei-me num salto, tomei um duche rápido e saí.
Na rua senti um arrepio, apesar da época, o tempo estava fresco, aconcheguei a gola do blusão, atravessei a Madeleine, onde as flores reinavam já, abafando o ar com a sua mescla de odores, e atravessei a ponte de Alma. Depois, desci a pé pela beira do Sena, sempre com o rio, eterna fonte do romantismo parisiense, sempre à vista. Como de costume, aquela estrada líquida está enxameada de bateaux-mouches e corre lenta e escura, barrenta. O Sena é um rio sujo, mas continua a ser irresistível. Assemelha-se ao fidalgo que apesar de arruinado, não perde o seu charme.Tinha combinado com ela encontrar-me numa pequena pastelaria ao pé da Librairie Shakespeare, mesmo ao lado do marco que assinala o quilómetro Zero da nação francesa. Quilómetro zero porque é a partir dali que todas as medições se fazem. Dizia-me um amigo francês mais chauvinista que seria a partir dali, que todas as medições referentes à civilização deveriam ser efectuadas, como que a significar que afinal a História começa ali e não na Suméria.
Era a primeira vez que vinha a Paris, mas já lá estava há 3 dias e com as indicações que a Marília me tinha dado, não foi difícil encontrar a pastelaria. Mas antes de entrar, e mesmo ao lado, despertou-me a atenção a montra de uma pequena loja que vendia soldadinhos de chumbo. Estava repleta deles, bem alinhados e separados por épocas em pequenas prateleiras, todos minuciosamente acabados, respeitando o mais ínfimo pormenor. Num plano mesmo à altura dos olhos, um batalhão de soldados napoleónicos. Sempre guardei um pouco o espírito de menino, as sagas heróicas empolgavam-me e aquilo fascinou-me.
E assim fiquei por momentos, alheio a tudo, até que senti um abraço por trás, e enquanto umas mãos pequenas me percorriam o peito, sentia nas minhas costas uma ligeira pressão, provocada por um encostar de cabeça que me chegava ao pescoço. Agarrei as mãos e virei-me.
A Marília estava quase na mesma desde a última vez que a vira. Vinha com um casaco de veludo negro, com um cinto do mesmo tecido atado com um nó descuidado que não lhe retirava aquela elegância inata. Por baixo, uma camisola cinza mesclada, de lã e uma saia que mal se via, de tecido escocês também em tons de cinzento. Caminhava sobre umas botas negras, de salto alto, e parecia leve como uma pena. Ou assim a via. Continuava sem dúvidas sobre a paixão que me alimentava os sonhos e que ali estava à minha frente, com a boca irresistivelmente húmida, aveludada e carmim, onde bailava o sorriso que lhe subia da comissura dos lábios até lhe tomar conta dos olhos escuros e tão abertos que pareciam eternamente espantados com tudo o que viam. Por baixo da roupa, adivinhava-lhe o corpo morno, de curvas suaves e cheirosas. Como sempre, tinha as faces afogueadas, outro dos sinais que eu imaginava ela nunca perderia.
Levou-me de escantilhão até ao Metro, enquanto cantarolava "Tous les enfants et les filles de mon age", saímos no infeliz Centre Pompidou, e fomos até à Praça Igor Stravinski, com o seu maravilhoso lago, e as suas figuras álacres, em constante movimento. Como a vida ao correr do sonho.

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Apesar da frescura que corria, não resistimos a sentarmo-nos na esplanada de uma crêperie do interior da qual se soltava um cheiro perfumado e doce inconfundível, e aí bebemos um escaldante chocolate. Quase tão escaldante como a tarde que passámos. E os dias seguintes. Parecia adivinhar que nunca mais estaríamos naquela intimidade, e parecia querermos gozar todos os pequenos momentos. Ela ria, com aquele riso solto que lhe atirava para trás a cabeça e a fazia ainda mais bonita. Um riso descuidado de quem estava em paz com a vida, de quem crescera sem tabus em comunhão perfeita com a natureza a cujos apelos nunca fizera questão de resistir. Marília continuava a ser o mesmo potro selvagem que eu conhecera anos antes, a rapariga que tomava banho no rio, nua tal qual os rapazes, sem pudores de qualquer espécie, por vezes, quase crua na sua simplicidade
Quando após o almoço me levou a conhecer o seu pequeno estúdio na Rue Clichy, sabíamos que não resistiríamos a desfazer a cama. Foi nela que me sentei cansado, quando chegámos ao 6º andar onde se empoleirava a estreita mansarda. Ela, de pé, chegou-se a mim e puxou-me a cabeça até à sua barriga lisa e enfiou-me os longos dedos mornos pelos cabelos. Depois, livrou-se das botas, deixou cair a saia e tirou a camisola. Usava um soutien-gorge (não necessitava, porque quando o tirou, os seus seios não se mexeram um milímetro) e as minúsculas e habituais cuecas de algodão fino. Puxou-me novamente a si, e foi quando lhe senti o calor da pele, as pequenas pérolas de suor na barriga, de volta do umbigo perfeito, mais provocadas pela excitação do momento do que pela temperatura ambiente. E aquele aroma suave que se desprendia dela e que era irresistível. A Marília não usava perfumes, mas cheirava sempre a alfazema, a acabada de lavar. Mas depois, nos momentos de grande excitação vinha aquele odor a fêmea que se lhe desprendia directamente das entranhas, que fazia parte de si, que ocupava todo o quarto e que tinha um poder quase mágico. Afrodisíaco.
Estendeu-se na cama e o seu corpo lançava-me um apelo mudo ao qual não conseguia nem queria resistir. As minhas mãos, como as dela, já não tinham poiso certo, tal como os nossos lábios, e a Marília era já um rio, uma corrente quase descontrolada. Sentia-lhe a humidade que cada vez mais se lhe acentuava entre as coxas morenas e foi aí que me perdi com um sorriso e uma sensação de realização plena, como se tivesse entrado no paraíso.

Lá fora, Paris. Uma das minhas cidades do coração.
Nunca mais fui lá voltei que não me percorresse um frémito violento na hora da aterragem. E nunca deixo de ir à Rue de Clichy. Há uma voz que, cá dentro, me chama lá. E eu conheço-lhe o timbre e não lhe consigo resistir.
E canto para mim, a velha canção de Jacques Dutronc:

"Je suis le dauphin de la place Dauphine
Et la place Blanche a mauvais' mine
Les camions sont pleins de lait
Les balayeurs sont pleins d'balais
Paris, s’éveille, Paris, s’éveille
"

Escrito por: VdeAlmeida, em 4/27/2005 10:38:00 da manhã | Permalink | |


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