Arranjo sempre qualquer desculpa que me evite a subida ao sotão, espécie de depósito de recordações, umas boas, outras muitas dolorosas e que só em casos extremos me disponho a enfrentar. Alguém se encarregava das arrumações e limpezas anuais. Quando me chegava a vez, arranjava uma desculpa, fraca quase sempre, para me excusar à tarefa.
Desta não tive maneira de me livrar.Com o semblante carregado subi os sete degraus que me seoaram dele. Abri a porta e logo o cheiro abafado, tão característico dos espaços há largo tempo fechados me invadiu as narinas. Na penumbra, pouco conseguia distinguir, pelo que me dirigi à janela e a abri completamente deixando entrar a luz e o ar fresco do entardecer. Corri o olhar. A um canto uma velha arca que abri. Dentro, dois ou três fatos, usados em Carnavais de há muitos anos, mais umas quantas roupas antiquadas. Ao lado um pequeno armário repleto de bugigangas fora de uso, na última gaveta, uma grande quantidade de fotografias, muitas do início do século passado, às quais o tempo esbatera a cor. Muitos dos fotografados, nunca os conhecera sequer. A história de cada um fôra-me contada vezes sem conta, com a minúcia e o respeito que se deve aos antepassados. Outras, foram por mim para lá atiradas na esperança vã de, com esse gesto, conseguir olvidar, ainda que de modo ténue, a fotografada.
Foi quando me virei que o meu olhar ficou preso no vestido. Dependurado cuidadosamente num velho cabide, e acondicionado de modo a que a traça não o atacasse, um casaco de veludo vermelho púrpura, a saia, do mesmo tecido, mas de um negro profundo. A visão mais nítida que tinha dela, era com aquele fato de saia-casaco vestido.
E não era só a sua figura invulgar, de beleza estranha, os longos cabelos de fogo e os olhos transparentes como rio de água clara, ou os lábios vermelhos, que a lingua suavemente atrevida, humedecia em movimentos quase imperceptíveis, uma provocação descuidada e involuntária. Era toda a sua presença. forte, que se impunha sem esforço. Era a alegria, o riso contagiante em forma de mulher jovem.Tinha um anseio, o de um dia vir a brilhar nos palcos. Cantava e declamava divinamente. A poesia bailava-lhe nos lábios e nunca conheci ninguém que a dissesse como ela. As canções tomavam nos seus lábios uma doçura e um calor inusitados. Dançar, só danças de salão, mas com a leveza com que se movimentava, dando a sensação que flutuava, acredito que a qualquer que lhe propusessem, corresponderia de forma superior. Em tudo ajudava a extraordinária elegância, a personalidade cativante.
À sua volta, quando se expandia em movimentos elegantes ou abria a sua voz em poesias e canções, tudo se iluminava, como que se dela se soltasse uma luz intensa, como se as estrelas deleitadas, se baixassem até ela e a iluminassem em preito de humildade face ao supremo da beleza.
Ao seu sonho opôs-se uma família demasiado tradicional, presa a convenções pequeno-burgueses inadequadas e retrógradas.
Mas desistir, dizia, nunca. Rebelde, procurou no casamento o meio de, ao mesmo tempo que se entregava nos braços do seu amor, tentar libertar-se das peias que lhe atalhavam o sonho.
A desilusão veio breve. O elo que a prendeu reduziu-lhe ainda mais a liberdade. Promessas não cumpridas, falsidades, tudo serviu para lhe cercear o que sonhara. Foi-se anulando, murchou na sua juventude, deixou-se ir. No seu lugar só ficou uma saudade nunca mitigada.Foi há tanto tempo. Foi ontem.
Sentei-me no velho cêsto de roupa revendo uma a uma as fotos ao mesmo tempo que passava as costas da mão pelo aveludado do vestido que fora dela. Passado uns minutos que não contei, sacudi a cabeça, espantei pensamentos. Pela janela, via já o céu incendiado pelo sol fugidio, que mergulhava no fio do horizonte. Fechei-a, e depois corri a persiana, deixando a penumbra afogar novamente o meu sótão. De seguida, saí puxando a porta para que não fizesse ruído, como que com receio de acordar tudo o que naquele pequeno espaço voltara a adormecer.
Por muito tempo, espero.