Novos Voos - Take Two

terça-feira, novembro 16, 2004
Verde

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Da janela da casa, águas furtadas empoleiradas numa colina, rés das Águas Livres, espreitava o casario abaixo, mas o olhar fugia-me invariavelmente para a mancha verde em frente, que me parecia tão perto que se julgava poder ultrapassar o espaço separador num pulo.Era um jardim, destino quase infalível das minhas tardes de 4ª feira. Nesses dias seguia pela mão do adulto, e o calcorrear das ruas até ele, era feito num frenesim impaciente, um desejo antecipado do chegar.
A visita era feita sempre com uma paixão renovada, o adulto, amante da botânica, ia debitando o nome das plantas e árvores, breves explicações da suas origens. Mas o meu prazer maior era mesmo o usufruir daquela calma, da frescura aprazível proporcionada pela continuada sombra, especialmente a partir da chegada da primavera, aquele ambiente mágico disfrutado em silêncio, quase religiosamente. Conhecia cada recanto, e quando chegava o cansaço, sentava-me num banco perto de um pequeno regato de águas frescas que rumorejava e saltava sobre as pequenas pedras que lhe atrapalhavam artificialmente o curso.
Olhava acima e a luminosidade diáfana coada pelas copas altas das árvores, enchia-me a vista. A densa folhagem soltava pássaros que pousavam livres na estreita alameda sem medo dos passantes.Depois, uma visita à velha casa localizada nos fundos do espaço, uma espécie de pequena mansão, invadida pela urze, onde um velhote que com o tempo se tornara amigo, ia completando o macabro mas fascinante puzzle que era a reconstituição de esqueletos de animais, quase sempre mamíferos de grande porte, e que se destinavam ao museu de História Natural da Faculdade anexa. De lá saído, a inevitável ida até ao Principe Real, onde debaixo do milenar, formidável cedro-do-Buçaco, sentado, satisfazia a gula com dois pastéis de nata, ainda mornos, acabados de comprar na Cister. No lusco-fusco do fim de tarde, o regresso a casa, acompanhado já pela saudade daquele lugar.
Aquela intimidade com a natureza em plena cidade grande, aquele esfusiante verde, o cheiro misto de aroma de flores com o da terra humida e o pólen que na Primavera se soltava e permanecia em suspensão como a névoa de um sonho, tudo me incitava a voltar sempreA perenidade do hábito colou-se a mim e nas semanas em que era impossivel cumprir o designio a ausência era sofrida, como se o dia tivesse sido amputado de uma parte importante.
A semana seguinte era passada com alguma ansiedade, sempre na esperança de a ter mais curta, para mais breve regressar àquele eden que eu tornara meu, privativo.
Depois, as solicitações da vida de adulto - como desdenho cada vez mais as pressas da gente crescida - foi-me fazendo perder hábitos, bons hábitos, os melhores.
Mas hoje, não sei porquê, lembrei-me do "meu" Jardim Botânico e do "meu" luxuriante cedro-do-Buçaco, mais dos pastés de nata da Cister. E amanhã, num pulo, salto do degrau da minha porta para o estribo de um "amarelo", desço no Largo do Rato e vou-me num pulo até àquele verde inigualável.

Escrito por: VdeAlmeida, em 11/16/2004 09:59:00 da tarde | Permalink | |


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