Novos Voos - Take Two

quinta-feira, junho 17, 2004
Adolescência


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Hoje lembrei-me de ti, Manel. E da Marília. Éramos vários, mas tu eras o mais chegado. E ela, a única rapariga. Coisa em que, na altura, nem reparávamos.
Há muito que não sei de ti. A vida separou-nos definitivamente a partir desse ano, e poucas mais vezes percorri esses campos e nessas alturas, por um qualquer acaso da vida, estavas longe. Soube muito tempo depois que tinhas sido apanhado a forçar a caixa de esmolas de um cruzeiro que fica num caminho ermo. Não me admirei, o teu sentido do correcto era já nessa altura muito lato, sempre achei que fazias as coisas menos boas com uma estranha inocência e nunca levantei um dedo acusador para te condenar.

Não sei porque me lembrei hoje, talvez porque me tenha cruzado com um bando de pássaros que percorriam livres o céu, tal como nós, miúdos, a subir veredas, a galgar paredes, pequenos "capitães da areia", usufruindo de uma sensação de liberdade única. Eu, nunca mais a senti na vida.
Recordas-te que andavas sempre de pé descalço, o que me arrepiava? Era tempo de férias, a terra fundia tudo e ao princípio eu não entendia como eras capaz de poisar os pés nus naquele braseiro, esquecia-me que sempre assim tinha sido. Nem me apercebia das calosidades que te protegiam, que estranharías era se usasses sapatos. Eu lá pensava nisso. Depois, fui-me apercebendo das nossas diferenças. Mas nunca tal nos afastou. Eras o meu companheiro desde que raiava a aurora, até à hora em que a minha avó, já de lanterna acesa a alumiar o alpendre, me chamava para o jantar.
Recordo-me dos nossos assaltos às videiras e figueiras que bordejavam os caminhos poirentos. Da alegria das nossas fugas, através dos campos cujo verde se ia desmaiando pela calor exagerado, mas ao qual resistiam as alegres papoilas. Recordo-me dos teus calções remendados mil e uma vez e da tua camisa quase no fio. Mas também dos teus olhos vivos e do teu riso descarado, quase obsceno. Da tua cara tingida das amoras silvestres acabadas de colher.
Acho que ainda tenho nas narinas o aroma desses dias, um cheiro acridoce a estevas e rosmaninho.
Recordo-me daquela vez em que, inadvertido me pendurei nas traseiras do autocarro que
passava junto a nós e de como, ignorante das leis da inércia me desprendi, caindo
desamparado no alcatrão. Foste tu que me transportaste a custo nos teus braços franzinos até casa, onde a minha avó me acolheu com ar de natural preocupação quando me viu desfalecido e pior quando deu conta do fio de sangue que me ia escorrendo do ouvido. Estive naquele estado de torpor durante três dias, lembras-te? Acho que foi a primeira vez que me cheguei á entrada do tal túnel, sabes? aquele de que poucos regressam.
Mas esse foi só um episódio triste.

Não apaga as saídas furtivas pela madrugada para "ir aos pássaros", coisa em que eras mestre.
Nem principalmente as nossas idas ao rio para banhos que duravam um dia inteiro. Eram sempre no açude que ficava na sombra do grande salgueiro, mesmo por debaixo da ponte romana. Nem sei se ainda existe a árvore, mas lembro-me do seu cheiro e dos mergulhos cada vez mais atrevidos e perigosos que dela ensaiávamos. O embate com a água era sempre ruidoso, gritado e cantado e as letras das canções nem sempre de índole muito decente. Era tudo tão intensamente vivido que nem nos lembrávamos da fome, até que ela batia com a força devida a um adolescente e então lá íamos à merenda sumária, preparada clandestinamente na penumbra da madrugada precedente. Recordo-me que na primeira vez que fomos, fiquei surpreendido por não teres calções. Nem tu, nem os outros. Depois, para não destoar acabei por tirar também os meus, apesar da vergonha inicial.

Foí aí que aconteceu o episódio mais marcante com a Marília. Nunca tinha ido, e na primeira vez que se decidiu, ao ver-nos nus, fez o mesmo, com aquele despudor que a inocência guarda em alguns. Puxou o vestido leve pela cabeça, sacudiu fora dos pés as sandálias de tiras, tirou as cuecas de algodão brancas e deitou-se atrevidamente à água. Foi a primeira vez que vi uma rapariga nua. A Marília pouco mais peito tinha que nós, e do corpo moreno e elegante, destacava-se o negro do púbis quase imberbe ainda, mas já bem visível. Para mim, virgem no assunto, a Marília nua era qualquer coisa. Recordo-me que te disse que achava que estava a ter um ataque de coração, de tal forma o coração me parecia querer saltar do peito. Deste uma risada, lembras-te?
Foi quando me apercebi que, no meu corpo, não era só o coração que reagia àquela visão.

Acho que foi nesse dia que começou verdadeiramente a minha adolescência.



Escrito por: VdeAlmeida, em 6/17/2004 09:46:00 da tarde | Permalink | |


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