Novos Voos - Take Two

quarta-feira, maio 23, 2007
Obsessões

Confesso: tenho algumas, poucas, obsessões, mas não teimo no que me perturba. Não conto os degraus ao subir ou descer escadas, não faço o caminho pelo mesmo lado do passeio, e não possuo espírito de avarento, pelo que não insisto em ver o filme ou ler o livro até ao fim. Se me maça, adormeço.
Mesmo as obsessões mais persistentes, foram sempre notavelmente contidas - e isto não é auto-elogio. Creio que a mais acintosamente presente durante a adolescência, terá sido uma que irrompia nos meus sonhos empinada num par de saltos altos, exibindo em corpo deslumbrante um busto cup D, e uma lasciva cabeleira ruiva emoldurando um rosto de pecadora. Essa extraordinária visão, obsessão partilhada por tantos e que ficou gravada em fita de cinema:
Gilda: Odeias-me, não é Johnny?
Johnny Farrell: Penso que nem imaginas quanto.
Gilda: O ódio é uma emoção muito excitante.Nunca deste por isso? Muito excitante. também te odeio, Johnny. Odeio-te tanto que acho que isso me vai matar, querido...
(beijam-se apaixonadamente)
Gilda: Penso que isso me vai matar.

…sempre se revelou inconsequente, porque sempre avaliei justamente a distância entre a terra e o Olimpo. Mas a verdade é que sempre me atraíram as inconsequências.
Uma outra houve, essa menos inócua. Há muito tempo que constatei da irrelevância de manter um diário. Tal não impediu que, em determinada altura da minha vida, me iniciasse num. Aproveitei uma oferta de aniversário, um caderno amarelado com uma fechadura para a qual nunca encontrei explicação uma vez que não a acompanhava nenhuma chave. Mas foi nele que comecei a apontar tudo o que me acontecia durante o dia, e na manhã seguinte subia para a figueira do fundo do quintal, e empoleirado num dos galhos mais altos, lia em voz baixa as banalidades descritas. O ritual tornou-se uma obsessão, e comecei a dormir mal na ânsia de subir á velha árvore para ler o caderninho, como se aquilo não fosse escrito por mim. Chego a pensar que, inconscientemente, esperava que, durante o sono, alguém pudesse ter acrescentado algum episódio que tornasse tudo aquilo minimamente interessante. Até que comecei a ter vertigens, sem nunca ter detectado com certeza, a origem do mal estar: se seria da altura do ramo onde me sentava, se do amarelo da capa, se das banalidades que lia. Inclino-me nitidamente para esta última hipótese.
Penso que a obsessão com que me debato há mais tempo, é a luta que imaginosamente travo com o Zé Cid há umas décadas: ele a querer convencer-me que aquilo que faz sair em disco é música séria, e eu teimosamente do meu lado da trincheira, a afirmar que se trata de qualquer coisa para a qual ainda não se conseguiu definição. Para dar força à sua crença, atira ele com os milhões de fãs.

cab1cab2cab3

E eu sem conseguir descobrir-lhe essas multidões. Aliás, nunca conheci um cantor de capachinho com uma legião de fãs, a não ser o Tony Carreira.
Escrito por: VdeAlmeida, em 5/23/2007 05:24:00 da tarde | Permalink | |


7 Comments:


  • At 10:44 da tarde, Blogger AGRIDOCE

    Li com um misto de sorriso, riso e gargalhada, e um pensamento sério sobre as obsessões que todos temos, uns mais que outros.

    Belo conto.

    Abraço  
  • At 4:06 da tarde, Blogger Maria Clarinda

    Sim, ri-me!.. todos nós temos os nossos quês!
    Excelente!  
  • At 4:58 da tarde, Blogger Gi

    Voltaste à carga com a escrita da forma como te conheci. Já lá vai quanto tempo Vic? Puseste-me a rir , eu que tão pouca vontade tenho de o fazer últimamente :)

    Um beijo grande amigo  
  • At 6:45 da tarde, Blogger Plum

    Adorei! E ri com um sorriso completamente aberto!!!
    Abraços!!!*  
  • At 12:16 da tarde, Blogger PARTILHAS

    Quando tinha 15 anos, chamaram-me obstinada...
    Por vezes, acho mesmo, que tenho registo de obssessão... Mas essas teimosias, ajudam-me a sobreviver...

    Beijos x2!  
  • At 12:47 da tarde, Blogger spring

    Gilda arrastou multidões, se elas soubessem o seu verdadeiro nome, seria assim Rita???

    O quarteto de jovens de Liverpool arrastou multidões, nenhum usava capachinho, mas a obsessão era tão grande que ninguem escutava a sua música nos concertos, tais eram os gritos.

    bom fim-de-semana e bons filmes
    paula e rui lima  
  • At 3:32 da tarde, Blogger Gi

    Vic, vou amanhã para fora uns dias, estiquei a corda demasiado vou parar. Depois falamos . Deixo um beijinho para ti para a G para o B e para a C , em suma para a família toda :)

    Até breve , fica bem .  
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