Novos Voos - Take Two

quarta-feira, maio 09, 2007
Uma folha do passado
Há dias, perdido em tarde tépida e ociosa, subia a Avenida da Liberdade pelo passeio direito, e passadas as sugestões descontraídas e primaveris da Timberland, estaquei frente à montra sempre notável de bom gosto do Rosa & Teixeira.
gentleman's wardrobe

Não tenho qualquer espécie de pruridos em admitir que admiro o requinte em todos os seus aspectos, mesmo naqueles que alguns consideram superficial. No extremo, acredito que nesses casos se trata mais de um preconceito formulado por uma falta de gosto apreciável do próprio, mascarada de superioridade intelectual. Afinal, a beleza é sempre admirável e nunca desprezível, qualquer que seja a vertente em que se apresente.
Fiquei uns minutos a contemplar as combinações estivais de tonalidades marinhas e arenosas e lembrei-me do meu padrinho.
Quando nasci já ele era velho, mas não o suficiente para que não tivesse tido peso na minha educação, quer cívica, quer intelectual. E no entanto, a sua formação tinha tido as bases mais rudimentares que se possam imaginar. Nascido em fins do século XIX, terceiro de quase duas mãos cheias de irmãos, filho de agricultores paupérrimos da Beira profunda, nunca pôs os pés numa escola. Mas creio que tal nunca o incomodou. Um dia, na minha inocência, perguntei-lhe porque é que nunca tinha ido à escola. Respondeu-me: - Como escreveu o Eça nas Farpas “As escolas são currais de ensino”. Havia nele portanto, um fundo anarquista.
Da sua infância, contava que, ainda menino, adormecera muita vez ao relento no meio da meia dúzia de ovelhas que guardava, embrulhado num cão sem nome e orelha alerta por causa dos lobos. Mais tarde, aproveitando o impulso da tropa obrigatória, viera para Lisboa, onde, aproveitando os ensinamentos rurais, se tornou jardineiro. Paralelamente, a sua admiração pelas artes, concorreu para que se fosse formando culturalmente. Assistia a concertos, visitava museus. Nenhum dos seus domingos, único dia da semana que tinha livre, era passado em vão. Aqueles com quem falava e que lhe conheciam as origens, admiravam-se com a sua capacidade de dar opiniões sobre música, pintura, poesia, mesmo sendo ele uma pessoa muito sóbria, mais inclinada a ouvir do que a fazer-se ouvir. E começou a levar-me muito cedo com ele.
Mas do que eu queria falar era da sua postura. Não era rico, mas na sua profissão era bom, o que lhe concedia uma vida razoável e lhe alimentava algumas pequenas vaidades. As saídas ao domingo eram antecedidas de um cerimonial a que eu assistia sempre muito curioso: depois do banho, ele em frente ao espelho a frisar o grande bigode imaculadamente branco com um pequeno alicate de pontas finas aquecidas (nunca me esqueci do seu olhar triste, quando, já nos últimos dias de vida o visitei no hospital. Perguntei porque lhe tinham rapado o bigode, mas nem ouvi a resposta. Ficou-me a convicção, que muita daquela tristeza era, não só pela premonição do fim que se aproximava, mas também do que lhe tinham feito, como se alguma da sua dignidade lhe tivesse sido roubada com o desaparecimento do bigode).
Depois, era o escancarar do guarda-fato e a escolha meticulosa do fato: de Verão, um fato de linho cinza claro ou azul escuro, uma camisa branca e uma gravata garrida, que com o lenço no bolso superior do casaco, eram as únicas notas que se destacavam na quase severidade do conjunto, que se completava com os suspensórios brancos de riscas negras e os sapatos cor de mel. De Inverno, um fato de flanela cinza escuro, com colete, a camisa de colarinho e punhos substituíveis e a gravata escura. Os sapatos negros, impecavelmente engraxados, e sobre eles, umas polainas que, aos meus olhos, lhe davam um aspecto muito antigo. Os fatos e os sapatos por medida, faziam parte das suas excentricidades. Todos os anos mandava fazer um fato para cada estação, sempre com dois pares de calças cada.
Confesso que quando olhava para ele o achava o máximo da elegância e quando passeava pela rua de mão dada com ele, inadvertidamente o comparava com os outros homens que passavam e sentia uma pontita de orgulho por ir com ele. Parecia um daqueles tipos que eu via no cinema, o James Stewart ou o William Holden, para aí.
A minha professora primária, certo dia perguntou-me quem é que me tinha posto o nome.
- O meu padrinho. Por causa de um tipo qualquer importante de Itália.
- Sei. E que faz o teu padrinho?
- É jardineiro e artista de cinema.
Escrito por: VdeAlmeida, em 5/09/2007 05:43:00 da tarde | Permalink | |


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