Tantas vezes se sentira tentado a cruzar aquela porta velha, e subir os degraus esconsos que o levariam ao salão vasto e gasto, e outras tantas recusara a tentação. Adivinhava-lhe o ambiente, semelhante ao das antigas milongas de Buenos Aires, onde se dançava o tango ao som roufenho dos velhos 78 rotações de Gardel,e o cheiro de tabaco ordinário e suor se disfarçava com perfume barato, tornando o ar quase nauseantemente irrespirável. Mas sobretudo, sabia que aquilo lhe iria reavivar as origens que ele tanto fazia por esquecer.
E no entanto, quer a barba cerrada, que apesar de impecavelmente barbeada lhe emprestava uma tonalidade quase cinza à pele morena da cara, quer o cabelo negro esticado para trás à força de fixador ou os olhos escuros, eram como que um estigma denunciador da sua latinidade, mesmo que não declinasse o seu apelido, Montoya.
Naquela noite porém, algo o empurrara pelas escadas acima. “É o destino”, pensara. E a dois e dois subiu os degraus que o haveriam de levar a uma guinada na sua vida, que nunca previra e que o marcaria para sempre. Inapelavelmente.
Quando entrou na sala pouca coisa era diversa do que imaginara, e mesmo a escada cheirava a humidade e a gatos conforme o previsto. O recinto era quadrado com o soalho gasto pelos anos, e no centro onde se concentravam os pares de bailarinos, apresentava mesmo um desgaste maior, alarmantemente perceptível.
Ao fundo, aglomeradas num canto estratégico, um grupo de mulheres idosas vestidas de escuro que lhe lembraram as carpideiras de um funeral de outros tempos, fiscalizavam os movimentos corporais das suas mais ou menos jovens familiares que desfilavam nos braços de machos, tímidos uns, atrevidos outros, mas quaisquer deles perigos latentes para as suas protégées. No canto oposto um tipo gordo e suado, manejava um gira-discos desafinado, e a música era a de sempre naquele tipo de colectividades: tangos, paso-dobles, qualquer coisa que desse para manter os pares agarrados, e interrompida aqui e ali, estrategicamente de modo a dar que fazer ao ensonado empregado do bar.
O seu olhar. que percorria o ambiente de modo distraído, fixou-se na mancha arroxeada que descansava num colo de mulher. Era um pequeno bouquet de violetas e seguravam-no umas minúsculas mãos, invulgarmente elegantes. Notava-se o cuidado extremo com que a sua possuidora as tratava. “São a minha única vaidade”, dissera-lhe ela uns tempos depois. Os olhos dele foram subindo, e deram com um rosto muito jovem, atraente, quase bela. Era de um tipo nórdico pouco comum, e, ao contrário da maioria das frequentadoras, trazia uma maquilhagem muito ligeira. Aliás, a quem atentasse com cuidado, parecer-lhe-ia ela, de tão leve, uma nota deslocada no ambiente pesado e de cores fortes.
Naqueles instantes, cruzaram-se os olhares e o dela também se deteve nele. “Era diferente, elegante, mas quase severo”, dissera-lhe. Disso, ele tinha consciência. Era bem proporcionado, e embora o dinheiro não abundasse, apresentava-se sempre vestido de modo elegante nunca excessivo, e as únicas notas mais coloridas na figura, eram as da gravata e do lenço a condizer que lhe saía do bolso superior do casaco.
Nunca se imaginara a dançar ali, mas não conseguiu resistir à tentação de sentir aquela estranha nos seus braços, e viu-se a caminhar para ela quase sem pensar. Fez-lhe um pequeno sinal e ela levantou-se com um sorriso tímido. Momentos depois, ele sentiu a macieza das suas mãos e o seu perfume discreto. Também a leveza do seu corpo e do cabelo que lhe roçava a cara. Tudo conjugado com uma precisão letal, bastante para lhe fazer disparar os instintos mais primários.
Foi deste modo que Carlos, sentado a meu lado no banco corrido de uma taberna obscura de Campo de Ourique, me relatou os primeiros momentos da sua relação com Júlia.
Foto de Claude B. Tenot
Beijo de boa noite ;)