Novos Voos - Take Two

terça-feira, maio 02, 2006
History repeating
Bifoto
Sempre que recordo aquele dia, sinto-me transportado a uma daquelas cenas excessivas dum dos filmes de Fellini, mulheres gordas de riso desbragado, rapazinhos barulhentos de joelhos esfolados e a limpar o nariz com a manga da camisa, homens calvos e olheiras de noites mal dormidas, com manchas de suor nos sovacos e meias de elástico lasso, velhas, descaídas e a deixar à vista os tornozelos brancos e nodosos.
Pela altura, a Rocha de Conde de Óbidos era um sítio estranho, onde, de um dia para o outro e conforme o navio que saía, se ia das lágrimas prenunciadoras da desgraça, à alegria da perspectiva de dias preciosos, embalados pela calmaria do alto mar. Ou do cheiro trágico do aerograma, ao perfume do postal ilustrado. Naquele cais, cruzavam-se as muitas despedidas aos que eram impiedosamente mandados para uma guerra que poucos sentiam como sua, com os raros que podiam desfrutar, despreocupadamente, de cruzeiros de luxo.
O ambiente era triste, apesar dos azulejos de Almada Negreiros, a única nota àlacre dissonante do cinzento omnipresente, ou do sol intenso que fazia do Tejo um espelho. Mas isso era com certeza eu que não via, sempre me convenci que eram as pessoas que faziam os locais, e daquele perpassava mais a agonia que o prazer.
Mas nessa tarde, a família não estava ali com nenhum dos dois propósitos, tão só despedir-se de um primo meu afastado, o Marquinhos, que ia ter com um tio ao Brasil. O Marquinhos tinha 18 anos safados, com um buço a sombrear-lhe o sobre lábio como era moda nos pretendentes a galã da altura, e era precedido da fama pouco invejável de só arranjar problemas. Fosse na leitaria da D. Ester, onde tinha uma conta de tabaco e lanches que iam matando o pai quando a senhora lhe apareceu à porta para cobrar, ou no bar da Calçada da Glória onde, à noite gastava o resto do dinheiro do velho em espumante barato e a energia com as meninas.
As histórias que contavam dele eram muitas, e os adultos da família comentavam-nas à boca pequena, mas eu ouvia, sempre tive bom ouvido, não era tão ingénuo como eles pensavam – por vezes havia um que fazia “shiu, olha lá o pequeno”, mas logo outro dizia que eu nem percebia do que falavam e além disso estava entretido – e muitas das vezes levava meia hora sem passar da mesma linha do meu livro de aventuras que a atenção estava noutro lado.
Enfim, o rosário era longo, tanto, que o pai dele, o tio Salvador, seguindo os conselhos do irmão que estava há mais de 40 anos no Rio de Janeiro e constava que era rico, lá se decidiu a mandar-lhe o filho sob a promessa de fazer dele um homem.
Mas, como que por encanto, naquela tarde todas as suas tropelias se desvaneciam, e fazia a sua aparição um Marquinhos imaculado, acabado de fazer a sua primeira comunhão. Parecia uma concentração de carpideiras: “Tão bom rapazinho! A falta que cá nos vai fazer!”.
Até a tia Angelina que sempre o detestara, e que certa vez o acusara veementemente de lhe ter roubado um par de brincos em ouro, lhe elogiava virtudes até então insuspeitas. Aliás, a tia Angelina enganava muito. Era pequenina, quase insignificante, e casada com um brutamontes de barriga rotunda e reformado da GNR que, constava, durante umas manifestações operárias nos anos 40, irrompera a cavalo e à espadeirada pelo Nicola, tendo-se safado só a muito custo da fúria popular. O homem impunha com a presença imensa e o cenho franzido, não direi respeito, mas algum receio, especialmente a alguém como eu, pequeno, acabado de largar os calções e bem ciente do poder de uma espada empunhada por um energúmeno. E no entanto constava, que lá por casa, quem mandava era a minúscula mulher.
Enfim, a tarde foi elucidativa a vários níveis e mais teria sido se não tivesse que me andar sempre a esgueirar para me livrar de dois miúdos que teimavam em querer “reinar com o primo mais velho”. Confesso que quando os vi lhes achei piada, mas depois tornaram-se piores que uma purga. Se os pais queriam que eles dessem nas vistas, tinham conseguido: ambos vestidos com uns ridículos fatinhos com gola de marinheiro, meias até ao joelho e sapatos de verniz, que com o calor de Agosto deviam dar um prazer escaldante. E eu, como nunca tive espírito militar, nem vontade de jogar á palmada com os bonecos da bola ou andar aos caldos no pescoço, decidi que eles não eram companhia para mim. O pior é que se me safava deles, caía nas mãos, ou melhor, nos beiços da tia Zulmira, que cada vez que me apanhava, me lambuzava a cara e me enchia de urticária com aquela barba dela.
Mas do tanto que se disse, se muito foi olvidado, uma frase ficou-me para sempre na memória, a que proferiu o tio Joaquim, á laia de aviso para o Marquinhos, que já estava de abalada:
- E não te esqueças: tem cuidado com as cabritas – era assim que então chamavam às mulatas – que elas quando apanham lá um português branco, não lhe dão paz.
E riu-se, com um riso esganiçado. E falava pelo que constava, pelo que ouvira, porque nunca pusera os pés no Rio
Passados estes anos todos, e embora o sentido migratório se tenha invertido, é curioso verificar que a história se repete, e o preconceito permanece, com a diferença única que hoje, parece ser muito mais abrangente.
E ao que parece também, nunca, até hoje, conseguimos exorcizar os fantasmas moralistas, principalmente quando se trata de sexo.


Propellerheads & Shirley Bassey – History repeating
Escrito por: VdeAlmeida, em 5/02/2006 11:06:00 da tarde | Permalink | |


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