É conhecida dos meus mais íntimos, a minha paixão por me “perder” em viagens. De toda a espécie: pequenas, um pouco mais longas, e ainda aquelas que, até hoje, nunca saíram da fase de projecto.
Gosto de as preparar, de gozar antecipadamente a saída, o passeio, o que vou ver. Creio que me falta um pouco a costela aventureira, e seria incapaz de me deitar à estrada sem ter a certeza sobre onde iria dormir nessa noite. Se no meu modo de estar perante os outros, pareço por vezes um pouco descuidado, apresento depois esta faceta cautelosa, o que não deixa de me intrigar. Provavelmente, será mesmo o gozo antecipado e não a cautela, e que me transforma uma viagem de 5 ou 6 dias, numa deambulação de duas ou três semanas.
Naturalmente que a concretização é mais intensa. Retém-se no olhar a paisagem, aquela luz precisa que torna o que vejo diverso do que vêem os outros, o ângulo especial que transforma o cliché turístico que é a Torre Eiffel num momento único. Sim, a partir dessa altura, aquele gigantesco “Mecanno” será para sempre só meu.
É esse facto, o dos meus momentos em cada sítio permanecerem para sempre só meus, pela simples razão de que nenhum outro olhar os verá como o meu, que fazem com que cada um seja imperecível. Por isso também, um pequeno passeio pela cidade que conheço desde sempre, pode transformar uma manhã, numa viagem diferente.
E no entanto, não creio que pudesse desfrutar completamente da magia de uma viagem se a não pudesse partilhar. Por vezes, aprecio a solidão, mas nunca nestas alturas. Gosto da partilha dos momentos, da alegria, do frisson causado por cada nova imagem ante os meus olhos, e de ver a surpresa e o encantamento reflectida nos olhos da que me acompanha.
Um dia, estava com C. no café, e contava ele da sua satisfação pela recente ida a Paris. O seu entusiasmo tornava-se quase inconcebível para quem o conhecia pouco, porque C. é quase cego. Por isso, alguém lhe fez notar a sua admiração, face às descrições pormenorizadas que fazia de tanta coisa que mal poderia ver. C. manteve-se uns segundos calado, e respondeu:
- Mas eu vou sempre com a Maria, e ela vê tudo. E vai-me descrevendo. É por isso que sei que há um maravilhoso relógio dourado sobre a entrada da Place des Vosges, indo da Rue de Birague, e gárgulas extraordinárias prontas a largarem-se das abas da Notre-Dame.
C. disse assim com toda a simplicidade, que tinha visto Paris pelos olhos apaixonados de Maria, e que, amando-a, não poderia deixar de se apaixonar pela cidade.
E o quanto aquela partilha lhe enchia e transbordava a alma.