O dia era de primavera plena, luminoso, como estes que ultimamente têm pintado de sol a cidade. Convidava ao desfrutar do ar livre e eu fazia-o, sentado à sombra de uma árvore centenária, à entrada do Jardim da Estrela, gozando a brisa leve que corria, um livro no qual mal me concentrava e a preguiça que me abraçava.
Alguém se aproximou, vi-o pela sombra que se ia projectando no prolongamento do meu olhar, que alertado pela presença, se foi elevando na curiosidade de descobrir o intruso. Era uma cigana, mirrada de velhice, com um olhar penetrante e inquieto, e um sorriso a escapar-lhe pelos dentes ralos, e que em tom de desafio se propôs contar-me o meu futuro.
Sempre me recusara a saber o que me aguardava, não que não sentisse curiosidade em saber se um dia teria direito a tudo o que ia sonhando, mas porque o receio de que as coisas fossem diversas para pior do que eu imaginava, se sobrepunha a qualquer interesse na antecipação. Por isso, o “Não” surgiu redondo.
A velhota contudo, insistiu. Insistiu muito. E o dia preguiçoso não convidava a muita resistência, e como nestas coisas já sei que acabo por ceder, para evitar prolongar a teima acabei por lhe estender a mão, que ela agarrou, virando a palma para si. Estava lisa, precisamente o oposto das costas da mão dela, juncada pelos relevos das articulações e das veias escuras, que a idade aliada à magreza, ajudava a acentuar.
Ficou muda, e supus que estivesse a criar suspense, como é hábito nestas coisas. Mas não, largou-me a mão parecendo-me genuinamente assustada. Lançou um “não tem linha de vida, nem de coração, nem nada”, e foi-se com ar estranho e cabisbaixo.
Olhei a palma da mão, para lhe confirmar a falta de algo, mas pareceu-me a mesma de sempre. E no entanto, a velha fizera-me notar a ausência.
Já não voltei ao livro, e fiquei a pensar se aquilo teria a ver com as vezes que sonhava que não era eu,ausente de mim, como que vivendo uma vida paralela, observando tudo à distância. Por vezes, até acordado permanecia naqueles estados de alheamento, como nas vezes em que o ascético Vieira, meu estimado professor de História, me surgia por detrás, vindo nunca soube donde, e me batia levemente com a noz dos dedos na nuca, mesmo ao lado da orelha, ao mesmo tempo que perguntava num murmúrio “Já cá não estamos outra vez?”. Apanhava-me sempre.
Notei então que em mim, paradoxalmente, a ausência estava quase sempre presente.
Mas o que verdadeiramente me inquietava era o facto de nunca conseguir reassumir os pensamentos que ocorriam nesses lapsos de tempo, embora, por exemplo, tanto a floresta da Tasmânia como os jardins de Kyoto me fossem familiares, mesmo nunca lá tendo estado.
Como também não consegui concluir se as ausências de linhas na palma da mão poderiam ser responsáveis por esta aparente indiferença com que ultimamente trato os meus espaços, ausentando-me deles, tornando assim, mais uma vez, a ausência, uma presença assídua, deixando-a ter aqui, a primazia.
De qualquer forma, não acredito que não tenha pelo menos linha de vida.