Novos Voos - Take Two

terça-feira, maio 16, 2006
Cheiros...
Campos amarelos


Um dia, ainda miúdo de calções, passando, manhã cedo, apressado para a escola, por uma pastelaria da zona, famosa pela qualidade dos seus pasteleiros, veio-me às narinas um bafo se escapava das frestas ventiladoras que rasgavam a parede, mesmo junto ao chão. Desprendia-se daquelas pequenas nuvens um cheiro adocicado e morno, e num instante fui por ele atirado para o colo maternal de que há muito perdera o aconchego.
Talvez tenha sido essa, a primeira ocasião em que tive a percepção nítida que por vezes, basta um pequeno estímulo aromático, para que a memória se precipite em lembranças adormecidas.
E nestes dias em que o Verão não se decide, apesar de tudo cheira-me a férias e desperta-se-me uma espécie de nostalgia pela ansiedade que, em tempos idos me salgava os dias, na perspectiva de liberdade, que era palavra que para mim, verdadeiramente, só nessa altura fazia sentido.
E é assim que pela manhã, ao abrir a janela, me arrepia a pele o cheiro sensual da maresia, misturado sem eu saber muito bem porquê, com o aroma do centeio que se soltava do pão fresco que a minha avó guardava na enorme arca de madeira, e da terra encharcada em que ela enterrava os pés quando regava, ao alvorecer, o enorme campo de milho.
Conheci-a já velha, muito magra, a pele curtida e engelhada como um pergaminho amarrotado, mas sempre firme. Acho que foi o que sempre mais lhe admirei, a firmeza, que por vezes raiava a dureza, uma característica que herdara das vicissitudes, tanto como da rudeza dos campos onde nascera, vivera e haveria de morrer. Era tanto assim que nunca imaginei a minha avó doente, e ela deu-se ao trabalho de não me desiludir.
Por vezes fica-se a pensar no porquê de algo que se fez, sem encontrar razões plausíveis, como se fossemos para nós próprios, um mistério insondável. E nunca consegui descobrir o motivo dos meus despertares madrugadores, como se sentisse que a cama tinha vida própria e me queria fora dos lençóis de linho, só para me sentar na balaustrada rústica que dava para o quintal, e assistir àquele rito diário dela a puxar a água do poço e a deixá-la correr pelos regos abertos, inundando os pés de milho e as macieiras. E os pés dela, descalços, a enterrarem-se na lama como se fossem raízes, como se ela crescesse daquela terra negra e a cheirar a qualquer coisa que eu não sabia o que era, mas de que gostava. E depois ela vinha, passava-me a mão pela cabeça, uma mão cheia de calos de empunhar a sachola, e puxava-me até à cozinha, onde fumegava a cafeteira de café de cevada. E chegava-me a malga de leite de cabra acabada de ordenhar, e o pão escuro, cortado grosseiramente, tal como o queijo de cheiro activo e sabor acre, e eu sempre achei que não havia nada que combinasse melhor ao pequeno almoço que aquele café com leite, e aquele pão, e aquele queijo, e aqueles cheiros todos misturados, que nunca mais me desapareceram da lembrança.
Nunca vi a minha avó vestida de outra cor que não fosse o negro. Mas as minhas recordações dela, são sempre coloridas. De sorrisos, de afectos – mesmo que ela, como a terra-mãe, não fosse pródiga nessa espécie fraqueza que são os carinhos – de campos agrestes, que de tratados com tantos desvelos, se abrem em pão, de silêncios.
E também de sabores e aromas. Todos eles simples mas fortes, quase telúricos.

Como ela.


Josh Rouse - Summertime
Escrito por: VdeAlmeida, em 5/16/2006 07:20:00 da tarde | Permalink | |


2 Comments:


  • At 3:13 da tarde, Blogger Black Angel

    os meus comentários aos vossos textos, foram sempre, e só, comentários aos vossos textos. se se sentiram ofendidos, proponho que leiam cuidadosamente cada um dos textos que escreveram e as minhas respostas. não tenho culpa que tenham transportado esses comentários para a vossa vida pessoal. não preciso de fazer comentários para ter visitas. façam um exame de consciência…passem muito bem. a quem não enfia a carapuça, as minhas desculpas…
    blackangel

    e os vossos e-mails foram ridículos. esperavam o quê?  
  • At 3:50 da tarde, Blogger eli

    o olor - de uma rosa
    saudades - de tempos não tão antigos assim
    beijo meu - da A. também :)  
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