Sempre transpareceu serenidade.
É inteligente sem ser sobredotado, e sabe que o é. Nota-se que, sem ser vaidoso – nunca faz alarde do que sabe – tem orgulho no que sabe. É diligente, atento, pelo que aprende com facilidade. Porque quer aprender. Lê tudo, absorve o que lhe chega, e encrespa-se um pouco, embora quase sempre de forma mansa, se lhe tentam desviar a atenção, quando se concentra em algo que lhe interessa.
Mesmo o senso de humor, que antes me parecia faltar-lhe um pouco, se foi refinando, e não raro, conta uma ou outra anedota, por vezes até, com um humor arguto pouco habitual em alguém da sua idade.
Passeia-se comigo paciente e alegremente. É bem disposto e parece sempre feliz. Estende-me o dedo mindinho, e eu retribuo o gesto, e assim vamos, com os dois dedos enrolados um no outro, como que para não perdermos contacto, ou então estende-me a mão pequena, que se perde na minha, quando há muita gente e pensa que há o perigo de se perder. De vez em quando tem uma tirada que me faz rir. De outras, faz reparos que me surpreende pela agudeza de espírito, e pelo interesse que demonstra pelo que o rodeia. Já reparei que, mesmo quando parece ausente, nada lhe escapa.
Gosta da presença e das brincadeiras dos miúdos da sua idade, mas não lhes exige a presença, pelo que estes dias de férias são passados quase sempre sem companhias da mesma idade, mas não se queixa. Convive portanto bem com os adultos e consigo próprio e quase se basta a si mesmo para preencher o seu dia.
Que como disse, decorre serenamente. Sem exigências de espécie alguma, sem birras, reparte-se entre os passeios, as idas à praia, onde a areia e o mar lhe fornecem suficiente matéria-prima para lhe preencher o tempo, a leitura (tem andado a ler o D. Quixote, mas todos os dias lê os quadradinhos da Mónica e do Cebolinha), e o canal Disney.
E no entanto, a noite chega trazendo consigo a ansiedade. Deita-se e adormece, mas o sono raramente é sossegado. Por vezes fala angustiantemente, sinal de que tem pesadelos. Quando o ouvimos, acorremos. Se não damos por nada, é certo que pouco depois se levanta e vem lá, pedindo baixinho a companhia de um de nós. Já me aconteceu chegar ao pé dele para o sossegar, e dar com aqueles olhos grandes e escuros, muito abertos na penumbra, na procura ansiosa da presença de quem ele sabe que o ama e o defenderá sempre daquelas sombras nocturnas. Estende-me a mão, e segura a minha, e adormece novamente, mais sossegado. Mas raramente durante muito tempo. As noites são sempre uma sucessão de pequenos e perturbados sonos
E no entanto, apesar da sua agudeza de espírito, não consegue dar conta do que o inquieta. Parece que a sua mente mantém, voluntariamente, janelas fechadas que se recusa abrir a si próprio e aos outros.
E isso provoca alguma inquietação em nós, que com ele convivemos. Talvez até mais do que aquela que ele sente.
Porque não conseguimos determinar que angustias estranhas poderão assim envolver de desassossego as noites de uma criança aparentemente tão serena.