Nunca foi uma paixão minha. É verdade que aquele ar angelical atraía, e o ligeiríssimo intervalo entre os dois dentes da frente lhe emprestava um toque de sensualidade muito própria. Era bonita e agradava, mas ficava-se por aí o seu nível de sedução em relação a mim.
Paixão assolapada era-o para o Paulo, que ficava num estado de êxtase de cada vez que ouvia a Sylvie. A princípio, aquela fixação dele deixara-me perplexo. Afinal, éramos ambos intransigentes, musicalmente falando, ouvíamos Yardbirds e Georgie Fame, Beatles ou Van Morrison, mas nunca alguém que cantasse versões (a não ser algum dos grandes clássicos dos blues), muito menos noutra língua, como era o caso. Tínhamos uma espécie de acordo tácito (é verdade, era sinal de algum preconceito, mas um preconceito que assumíamos com orgulho) sobre isso e só algum tempo depois, descobri que aquilo não tinha nada a ver com a questão musical, era amor adolescente puro e duro, esse sentimento tão forte em obstinação e cegueira.
O Paulo, adolescente como eu, era muito louro e tinha uma cara de queixo quadrado, de pele branca, baça e com borbulhas, onde brilhavam uns olhos azuis, muito raros no meio da imensidão de olhos castanhos mediterrânicos que inundavam o liceu, facto que de algum modo, o poderia destacar na multidão. Porém, a limpidez daqueles olhos cor de oceano não lhe traziam qualquer vantagem funcional, uma vez que tinha que usar uns óculos grandes, de aros de tartaruga, que lhe corrigiam a miopia. Queixava-se muita vez do facto, e para o alentar, dizia-lhe sempre que um dia iam arranjar modo de lhe corrigir o problema.
Aquela fixação, durou o bastante e tão fortemente, que me conseguiu arrastar para um concerto dela no Monumental, que ficou para a história, como um dos mais acidentados da minha vida. Refiro só um dos episódios, que teve como protagonista o artista que fazia a 1ª parte do espectáculo. Era o António Calvário e tal facto demonstrava alguma falta de tacto por parte do empresário, no caso, o Vasco Morgado, que teve a insensibilidade de reunir dois artistas com públicos muito distintos e, de certa maneira, antagónicos. Enquanto a Vartan era aplaudida maioritariamente pela juventude estudante de então, o Calvário tinha nas donas de casa, nas costureirinhas e sopeiras, frequentadoras dos serões para trabalhadores e audiência maioritária dos romances Tide, o seu público preferencial (e aqui não estou a fazer qualquer juízo de valor, mas tão somente a apontar um facto). Ora o problema surgiu porque quem estava ali, estava para ouvir a francesinha e não ao Rei da Rádio, que do alto do seu trono, não conseguiu entender isso, facto que lhe foi fatal. Sabe-se como o adolescente pode ser quase tão cruel como a criancinha, e quando o Toninho surgiu no palco para dizer, que “entendia que a juventude ali estava para ouvir a Sylvie, mas ele tinha que cumprir o contracto, patati, patatá ”, ao coro de assobios e pateada de balcão e plateia, juntou-se uma batata enorme que atirada por mão certeira, lhe acertou em cheio num olho e o prostrou no palco. O episódio tragico-cómico foi ovacionado mais ruidosa e longamente que a Sylvie, quando surgiu no palco com um vestido muito escuro e justo, que lhe realçava as curvas do corpo e o louro platinado do cabelo. Depois, veio aquele fiozinho de voz que deixou o Paulo em estado de choque.
A militância amorosa do meu amigo, só sofreu um abalo, no dia em que soube que ela ia casar com o Johhny Halliday. Logo o Halliday! Se havia alguém a quem tínhamos jurado “ódio eterno” era ao Halliday, com aquele ar rançoso, a querer imitar o Elvis Presley, quue já de si não achávamos grande coisa! Mas já recomposto dizia: “Ela ainda vai cair em si, vais ver! Pode lá ser, casar com aquele mastronço!”. Claro que aquilo era o discurso de quem se quer convencer a si próprio, um wishfull thinking, mas lá no fundo sentia que aquilo era irreversível. Por isso, quando se consumou o enlace, ele não sentiu tanto o golpe.
No ano seguinte por esta altura, um Paulo ainda esperançado que a Sylvie Vartan um dia o viesse a conhecer e no mesmo instante deixasse o lar e o pingonheiro do Halliday, comunicou-me que nesse Verão iria para Inglaterra passar uma parte das férias na apanha dos morangos. Confesso que senti uma pontinha de inveja por o ver partir para o “país da nossa música “, para a terra dos Beatles, mas a satisfação por ele, sobrepôs-se ao resto.
Depois da saída das notas, ainda vadiámos por Lisboa e arredores umas semanas, praia, bailes, uns mata-ratos fumados às escondidas no miradouro da Jardim da Estrela, até que, numa tarde de início de Julho, partiu para Londres. Seguiu-se um longo silêncio, até que um dia o carteiro me entregou um postal com vistas e marca de correio de Blackpool. Não vinha assinado, mas aquela letra muito inclinada para a esquerda era uma impressão digital. A mensagem era simples:
“Strawberry fields forever”.
Enigmática, a mensagem só teve esclarecimento algum tempo depois: o Paulo ficaria por lá para sempre. Ou pelo menos, o tempo suficiente para escapar à tropa, e consequentemente, à guerra.
Nunca mais soube dele, nem da sua paixão pela Sylvie. Mas suponho que alguma inglesa loura e muito branquinha, tenha tomado o lugar dela no seu coração.
Porque está muito bem escrito. Tem vida.
Abraço