Novos Voos - Take Two

quarta-feira, outubro 27, 2004
Hoje lembrei-me de ti

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Hoje, como em tantos outros dias, lembrei-me de ti. Não sei porquê, mas lembrei-me de ti e desta não o quis calar para mim, quis que o soubesses. Lembrei-me de como já eras velho, engelhado pelos anos e pela rudeza das serras quando te conheci.
Lembrei de como eras pequeno, magro, quase com os ossos a perfurarem-te a pele. E no entanto, lembro-me também que te sobrava força e genica para submeteres os animais, que te obedeciam sempre com um olhar baixo, transparecendo receio. Recordo-me dos safões de pele de cabra ajustados às pernas, para que os cardos dos caminhos indefinidos que percorrias não te martirizassem as pernas, e a camisa de flanela grossa, a cheirar a eucalipto.
Recordo também as botas grosseiras, sempre soberbamente sujas que te obrigavam a deixar á porta para não sujares a casa, e do pequeno bigode, parecido com o do funesto algoz germânico.
Se fosse agora, talvez te dissesse para lhe alterares a forma, para evitar conotações. Mas na altura, nenhum dos dois fazia sequer ideia da existência de tal ser. E depois...não, não diria nada, que se lixassem as opiniões, é assim que te recordo, aquilo fazia parte de ti. Como fazia o sorriso fugidio, quase envergonhado que de quando em vez te compunha a face, e se estendia aos olhos pequenos e profundos quando alguma coisa simples – sempre coisas simples, que nunca foste de complicações – te satisfazia.
Lembro-me como te sentia os calos quando me pegavas na mão – como eu achava enormes, as tuas - e me levavas a passear pelos campos a cheirar a seiva fresca dos pinheiros e a rosmaninho, e me mostravas como se recolhia o mel das abelhas e se caçava o coelho bravo. Ou como espantavas as raposas que te ameaçavam as capoeiras, e defendias os redis da ameaça dos, já então, escassos lobos - lembras-te que, numa noite passada no monte,e vindo de tu de montar armadilhas às raposas, me vieste encontrar refugiado no cimo de uma figueira transido de medo, porque os ouvia uivar ao longe?
Hoje lembrei-me de ti, não sei porquê. Talvez porque, mais uma vez, li aquele excerto do Eternamente, do Miguel de Sousa Tavares:

E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.”

Sim, tu és um dos que caminham comigo. Enquanto eu viver, não te deixarei morrer, viverás comigo. Não te acontecerá o que acontece a tantos como conta, num artigo de uma crueza atroz, Luis Sepulveda:

Aquilo que se nega não existe e, portanto, é algo que não nos deve preocupar. Foi essa a lógica da propaganda nazi e até agora não deixa de ser imitada de cada vez que a humanidade é colocada no fio da navalha. Nos Estados Unidos desapareceram as fotografias dos mortos calcinados no deserto iraquiano durante a operação "Tempestade no Deserto", e as arrepiantes cenas de outras guerras, como as do Vietname ou Afeganistão, não se encontram em nenhum meio de comunicação. Até foram desterradas dos arquivos pagos da Internet.
O destino dos mortos é a solidão e o esquecimento
.”

Não, a ti, ninguém apagará da fotografia. O teu destino não é a solidão e o esquecimento, porque eu ainda hoje me lembrei de ti.

Escrito por: VdeAlmeida, em 10/27/2004 09:27:00 da tarde | Permalink | |


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