Novos Voos - Take Two

segunda-feira, agosto 30, 2004
Querido Diário - X

Hoje era dia de aqui pôr um poemito, que eu cá sou muito orientado e isto do diário estava alternar (esta palavra tem conotações foleiras mas ainda é a mais adequada) para não se tornar maçador. Mas como têm insistido para saberem do resto do jantar, cambada de cuscos, lá terei que me descoser com o resto.
Bem, se for a ver, depois do que já escrevi sobre mim, de vocês todos já saberem as minhas petites imprefections, devo ter perdido o resto de credibilidade que ainda me restava. Adeus, poeta de fato de treino verde alface com vivos laranja eléctrico.
Mas vamos ao que interessa.

Quando chegámos ao restaurante pedi logo um copo de água para tomar um Panadol para ver se me via livre das dores de cabeça, e o Aristides começou a anotar o pedido da Elisa.
Fui um cavalheiro e até ajeitei a cadeira para ela se sentar, gesto que ela apreciou e agradeceu com um sorriso até ao decote. Assim ao perto, e a luz decente, ela era na verdade um pedaço de mulher e toda a gente se virava para olhar, embora nem fosse preciso grande esforço, uma vez que ela se impunha pela exuberância.
A conversa foi deliciosa, se exceptuarmos o episódio dos dois raparigos, e ela lá me foi contando das suas ambições de ir estudar para os Estados Unidos com uma bolsa de estudo da Gulbenkian. Pensei cá para comigo que ela só teria a bolsa quando as propostas fossem analisadas por um colégio de surdos, mas não me manifestei em voz alta.Só a olhei directo no peito e lhe disse que ela tinha um magnífico aparelho vocal.

Mas não devia ter falado. Quando o jantar estava à beira da sobremesa, aparece o músico de serviço, sem o tal violino, mas armado de acordeon, e disposto a tocar-nos umas valsas musettes como seria da praxe num restaurante francês. Foi aí que sucedeu algo imprevisto. O estupor, antes de começar a tocar, perguntou à Elisa se queria algo de especial e ela, aproveitando a embalagem da conversa, perguntou-lhe se ele conhecia a ária Mi Chiamano Mimi, da Boèheme, do Puccini, e cantarolou umas notas para exemplificar. Aí, fiquei logo em sobressalto. E o meu terror foi completo quando ouvi a resposta positiva. Mas não reagi a tempo. Ela levantou-se de imediato, aqueceu a voz de uma forma arrepiante e fez-lhe um sinal. O rapaz começou a tirar uns acordes ao mesmo tempo que ela enchia o peito e desatava a assassinar mais um clássico. De imediato, os clientes começaram a levantar-se, mas o Aristides foi de pensamento rápido e meteu um empregado à porta para não deixar sair ninguém sem pagar.
Aquilo foi um verdadeiro motim, além de que as "flûtes" de champanhe que estavam nas mesas, começaram a estalar cada vez que ela chegava aos agúdos, prejuízo que o Aristides se apressou a acrescentar-me à conta, já de si bem gorda. O restaurante, por essa altura, era palco de um espectáculo dantesco.
O pior porém, foi quando ela atingiu a altura mais dramática da peça, em que os agudos atingem o limite.
O vestidinho dela, abotoava junto ao peito com 3 botõezinhos. Ora na altura em que ela atingia o limite das suas cordas vocais o botão de cima, com a força daquele extraordinário megafone, foi projectado como uma bala. Imaginem para onde eu estava a olhar! Pois, exactamente! Levei com o botão numa vista, e pensei de imediato que estava cego. As dores já nem me permitiram ouvir o remanescente da récita, que também não durou muito mais tempo, porque a Elisa, na sua generosidade, e apercebendo-se da minha tragédia, calou-se, o que fez, como que por milagre, com que o restaurante voltasse à sua pacatez habitual.

A Elisa não se preocupou sequer com o facto de o botão ter deixado á vista o wonderbra grenat nº 44 e não me largou, tratou de mim com desvelo, devia estar a ver que ficava com o noivo estropiado, sim, que eu percebi que ela já me considerava propriedade sua. Com uns pachos de água morna a dor lá se foi desvanescendo um pouco e quando me senti com forças, fui até à casa de banho e fiquei petrificado quando me vi ao espelho. Parecia que tinha sido picado no sobrolho, por uma abelha gigante, estava tudo vermelhão e inchado no sítio atingido pelo projéctil.
Lá voltei á mesa na altura em que o Aristides se preparava para queimar os crêpes, que eu já nem provei, ao mesmo tempo que me lançava um olhar de viès, como se fosse eu o causador do cataclismo que lhe varrera o restaurante. Sempre pensei que ele nos convidasse gentilmente a abandonarmos o seu estabelecimento, mas eu devia saber que ele não ia desistir de se ressarcir devidamente do estrago.

Quando fui pagar a conta, disse-lhe que achava o preço exorbitante, e ele respondeu que ainda estava com sorte por não ser processado por perdas e danos.

Portanto, foi totalmente desmoralizado que saí do restaurante, com a minha gentil Elisa, aquele autêntico tufão humano, pelo braço. Era a memorável ferida na carteira, a ferroada na vista, e o amachucão na alma por me ver sair completamente vencido de um jantar de onde pensara sair como Napoleão de uma das suas vitoriosas campanhas. Nem o meu Armani brilhava.
Rumámos a casa, e na viagem de regresso, a Elisa encheu-me de mimos: mordiscou-me o lóbulo da orelha direita, acariciou-me a nuca de uma maneira que todos os pêlos se me eriçaram, ao mesmo tempo que eu tentava evitar sucessivas colisões. E chamou-me vários nomes carinhosos, de qu não retive nenhum. Foi assim que a minha moral se foi levantando pelo caminho.
Estacionei e levei-a até à porta onde esperava ao menos uma despedida carinhosa como reconhecimento pelas agruras por que passara. Aì, ela abriu a porta, puxou-me violentamente para as escadas e fechou-a atrás de si, ao mesmo tempo que eu tentava manter-me de pé.

Bem, mas isso é outra história. O jantar está despachado.

Escrito por: VdeAlmeida, em 8/30/2004 08:06:00 da tarde | Permalink | |


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