Afinal ando a ser traído pelos meus próprios olhos, e pior: pela porcaria dos binóculos, que além de não terem o zoom que eu esperava, pelos vistos distorcem as imagens. Estou danado!!!
Além de que tenho uns vizinhos que só me dão preocupações.
A verdade é que encontrei a "minha" soprano ontem de manhã no café 33 e caíu-me o queixo literalmente. A moça não tem nada de avantajado excepto o peito. Digamos que é uma mulher 36 a usar um wonder-bra 44, tão a ver? De resto, aquilo está tudo "en su sítio".
Tem uns olhos castanhos suaves e a dar com o busto, isto é, enormes, cabelos da mesma cor, levemente ondulados, uma boca vermelha como um morango a apetecer trincar, e uma cintura bem vincada, o que quer dizer que de ancas também não está mal servida.
Eu conto.
Estava eu a tomar o meu café da manhã, quando ela irrompeu pelo balcão, quase derrubando o suporte dos guardanapos de papel com...a parte mais avançada. Olhou para mim e inquiriu:
- Não é o vizinho do 3º andar em frente ao nosso?
Quase deitei o café que estava a beber, pelo nariz! Que cagaço! Pensei logo que ela me tinha topado com os binóculos. Quando me recompus, a medo respondi:
- Sou. Já a tinha visto. E ouvido. Muito prazer
- Ah!Eu sou a Elisa e então já notou que quero ser cantora lírica.
Pensei para comigo que o nome não podia ser mais desadequado. De lisa é que ela não tinha nada. Quanto ás aspirações...
- Sim, já dei por isso - não lhe dando conta do dó que tinha sentido pelo sol que ela errara de maneira tão dramática na noite anterior e do que pensava da sua tentativa de assassinato da obra do pobre Bellini.
- Sabe? o meu professor, o dr. Aníbal, acha que tenho grandes hipóteses de vir a ser uma grande soprano, e até já se ofereceu para me dar aulas em casa dele, se os vizinhos aqui se continuassem a manifestar de forma tão pouco civilizada como fizeram na noite passada.
Imaginei logo em que é que o safado do Aníbal estava a pensar. Lições particulares, pois.
- Nem imaginam os sacrifícios que faço pelo amor que tenho à minha arte, as dietas, os exercícios durante todo o dia!- Começava a entender
a razão daquela parte da fisionomia ter tomado aquelas proporções. Eram os exercícios, pobre moça. Arte, a quanto obrigas!
Aprestava-me eu para lhe dizer que estava muito agradecido ao destino por me ter dado como vizinha um tal talento, quando surgiu o Abel.
O Abel é um conhecido meu, simpático mas com umas maneiras um bocado afectadas. Há meses que o não via, e tinha-me constado que tinha tido um acidente de viação que o tinha deixado muito maltratado. Contaram-me que, indo ele no seu carro a passar sob uma ponte ou viaduto, não sei, lhe teria caído em cima, uma outra viatura que no preciso momento se despistara na estrada que lhe passava por cima.
Como sempre tinha achado o que me contavam um bocado bizarro, pedi licença à Elisa e indaguei-o:
- Já vi que estás recuperado. Agora conta lá, afinal que se passou contigo.
- Ai, filho, nem te conto - disse em voz suficientemente alta para ser ouvido em todo o estabelecimento, ao mesmo tempo que fazia um rodopio estranho com a mão direita, findo o qual a deixou pousar ao de leve no meu braço, e enquanto que soltava uma risada um pouco aflautada- Sabes? já me têm caído muitos homens em cima, mas enlatado foi o primeiro!
E riu-se muito, afastando-se muito direito até uma das mesas onde se sentou, cruzando as pernas de maneira um bocado estranha, dando-se mesmo ao trabalho de cuidadosamente puxar um pouco as pernas da calça para cima com as pontas dos dedos, para não as amachucar amachucar!
Bem, além de em poucas palavras me ter confirmado que a versão que me tinham contado era verdadeira, confirmou-me aquilo de que há muito suspeitava. Fiquei um bocado embatucado, mas fiquei bem pior quando o olhar faíscante da Elisa me fixou, como se eu tivesse responsabilidades na vida sexual do Abel. Depois, voltou-me as costas e saiu do café. Há pessoas muito preconceituosas.
Estes meus vizinhos só me metem nestes assados. Agora que tinha conseguido travar conhecimento com a minha bela vizinha, logo havia de ter aparecido o Abel mais o seu estúpido acidente.
Agora, nem sei como fazer para reatar relações com a minha ave canora
Há dias em que não se pode sair de casa.