Creio não errar muito ao afirmar que, pondo de lado os estados emocionais que nos ligam ao amor e aos seres que nos são queridos, uma das aspirações maiores de alguém minimamente curioso e interessado, será correr mundo, conhecer outras gentes e culturas, contribuindo assim para a plena realização pessoal.
Começa-se timidamente em criança, através dos quadradinhos de Hergé, que pelas mãos encantadas de Tintin nos leva do Congo ao país dos Aztecas, passando pelos Himalaias e até pela Lua. Ou pelas palavras de Salgari, que, nos torna bravos como Sandokan, e com ele se desbravam os tumultuosos mares do Índico, e as florestas selvagens do sub-continente indiana mais a miríade de ilhas que lhes ficam próximas.
Mais tarde, com aquele pragmatismo do adolescente que já sabe distinguir perfeitamente a fantasia da realidade, juntando a isso uma noção exacta de saber perfeitamente o que se quer fazer, embarca-se para o mundo todo na pele de Corto Maltese. Vai-se a Samarcanda e passa-se o estreito de Magalhães. Conhece-se o mundo e as mulheres exóticas que Pratt serve em incomparáveis aguarelas ou severos traços negros.
E em adulto, tenta-se cumprir o sonho, indo a lugares que até então se acolhem somente na imaginação.
Tendo-o feito na medida do possível, nos últimos tempos tem sido grande o apelo que vem de longe, dos confins da América do Sul, da Patagónia, da Terra do Fogo
muito graças aos livros de
Luis Sepúlveda, escritor apaixonante e apaixonado pela sua terra, trota mundos e eterno defensor de todas as utopias.
É com ele que tenho ido a essa terra distante, nos confins do mundo, a última fronteira do hemisfério sul, um território dividido pelo seu Chile natal e pela Argentina, quase intocado, defendido pelas suas barreiras naturais e pelas suas temperaturas quase insuportáveis.
Mas a viagem imaginária não chega, e o apelo de
Ushuaia, terra agreste perto da qual a maior das colónias de pinguins nidificam, é cada vez maior e vai-se tornando irresistível.
Veremos se o sonho se cumpre.
**********A norte de Manantiales, povoado petrolífero da Terra do Fogo, levantam-se as doze ou quinze casas de uma Calheta de pescadores chamada Angostura. As casas são habitadas apenas durante o curto Verão austral. Depois, durante o fugaz Outono e o longo Inverno, não são mais do que uma referência na paisagem.
Angostura não tem cemitério, mas tem uma pequena sepultura pintada de branco e virada para o mar. Nela descansa Panchito Barria, um menino falecido aos 11 anos. Em todo o lado se vive e se morre – como diz o tango “morir es una costumbre” -, mas o caso de Panchito é tragicamente especial, porque o menino morreu de tristeza.
Antes de fazer três anos Panchito teve uma poliomielite que o deixou inválido. Os pais, pescadores de San Gregório, na Patagónia, atravessavam todos os verões o estreito de Magalhães para se instalarem em Angostura. O menino viajava com eles, como um vulto amoroso que permanecia colocado nuns cobertores a olhar para o mar.
Até aos cinco anos Panchito Barria foi um menino triste, insociável, e quase não sabia falar. Mas um bom dia ocorreu um desses milagres habituais no sul do mundo: uma formação de vinte ou mais golfinhos austrais apareceu diante de Angostura, deslocando-se do Atlântico para o Pacífico.
Os naturais do lugar que me contaram a história de Panchito afirmaram que mal os viu, o menino soltou um grito dilacerante e que à medida que os golfinhos se afastavam, os seus gritos aumentavam em volume e desconsolo. Finalmente, quando os golfinhos desapareceram, da garganta do menino saiu um guincho agudo, uma nota altíssima que assustou os pescadores e espantou os comorões, mas que fez regressar um dos golfinhos.
O golfinho aproximou-se da costa e começou a dar saltos na água. Panchito animava-o com as notas agudas que saíam da sua garganta. Todos perceberam que entre o menino e o cetáceo se estabelecera uma ponte de comunicação que não requeria qualquer explicação. Acontecera porque a vida é assim. E ponto final.
O golfinho permaneceu diante de Angostura durante todo aquele verão. E quando a proximidade do Inverno ordenou que abandonasse aquele lugar, os pais de Panchito e os outros pescadores comprovaram com assombro que o menino não manifestou o menor indício de pena. Com uma seriedade inaudita para os seus cinco anos, declarou que o seu amigo golfinho tinha de partir, pois de outra forma seria apanhado pelos gelos, mas que no ano seguinte regressaria.
E o golfinho regressou.
Panchito mudou, tornou-se um rapaz loquaz, alegre, chegou a brincar com a sua condição de inválido. Mudou radicalmente. As suas brincadeiras com o golfinho repetiram-se durante seis verões. Panchito aprendeu a ler e a escrever, a desenhar o seu amigo golfinho. Colaborava, como os outros meninos, na reparação das redes, preparava lastras, secava mariscos, sempre com o seu amigo golfinho a saltar da água, realizando proezas só para ele.
Certa manhã do Verão de 1990 o golfinho faltou ao encontro diário. Alarmados, os pescadores procuraram-no, rastrearam o estreito de ponta a ponta. Não o encontraram, mas tropeçaram num barco-fábrica russo, um dos assassinos do mar, navegando muito perto da segunda angustura do estreito.
Dois meses depois Panchito Barria morreu de tristeza. Extinguiu-se sem chorar, sem balbuciar uma queixa.
Eu visitei o seu túmulo, e dali olhei para o mar, para o mar cinzento e agitado do Inverno incipiente. O mar onde até há pouco retouçavam os golfinhos.-(Luís Sepúveda, in Patagónia Expresso)