Desço as escadas vagarosamente e sento-me na esplanada, gozando este sol de Inverno que nos afaga a alma e a pele. Conforme me invade o corpo o conforto quente do café, de que saboreio sabor e cheiro, desvio os olhos e lá ao fundo o Tejo que se deita imperturbável, parece dourado. O rio, a meus olhos, é sempre tranquilo mesmo quando o envolve aquela bruma densa, que é prenúncio de tempestade e o torna de um cinzento quase chumbo e de uma densidade oleosa.
Estes extemporâneos raios de sol são um convite ao passeio e hoje, aqui sentado nestas mesas que me são tão familiares, decido-me a voltar a sítios onde há muito tempo não me deixava perder, e que também eles conheci como as minhas mãos, tantas vezes os percorri
Desço a avenida espaçosa, passo ao largo do velho Jardim Cinema, e mal afloro ao Rato, desvio-me para a esquerda, subindo a rua que vai dar ao que foi o primeiro dos grandes Centros Comerciais, mas paro a meio.
Aqui, neste jardim de cores brilhantes e muitos dourados, corri na juventude, sonhei na adolescência, e medito agora, quando a vida corre lenta, sem muitos sobressaltos.
Medito sobre os meus devaneios românticos de quando a idade era mais leve e a inconsciência parecia tudo desculpar. E deixo-me perder no meio destas árvores que me viram tantas vezes e que cá permanecerão quando eu não passar mais.
Não me enredo em nostalgias deprimentes, mas gosto de percorrer caminhos que já foram meus. Sento-me num banco e parece que me vejo, ainda de calções, a jogar ao lenço ou em plenários de “capitães da areia” (talvez no nosso caso, de betão fosse mais apropriado), que umas vezes terminavam em risos outras em discussão acesa a ameaçar transformar-se em rixa.
Por estes caminhos desenharam-se namoricos, urdiram-se estratégias para aliviar os caixotes de fruta que o sr. Eduardo, o merceeiro da zona punha fora da porta para a chamar a clientela. Depois eram as corridas, e o homem nunca se zangava connosco, afinal o filho também fazia por vezes parte da trupe, mas mandava um dos seus marçanos, os rapazinhos que ele ia buscar à província para trabalharem na loja, e que até lá dormiam, nos fundos dos armazéns, deitados numa enxerga sebenta.
Por detrás das altas arcadas do Aqueduto, o eléctrico que subia a rua quase sempre com um de nós na “pendura”, e o “pica-bilhetes” danado por nos dar com o alicate nos dedos.
É uma das zonas da cidade que melhor conheço embora esteja muito diferente (dois pátios, há uns anos apertadas casas de gente humilde, na maior parte operários, é agora um condomínio de luxo). Conhecia as padarias pelo cheiro do pão, sabia onde havia de comprar a melhor manteiga a quilo e o café com mistura de chicória. e a que horas a Dione tinha pastéis de nata acabados de fazer.
Deixo o jardim para trás, com as saudades a fazerem estragos. Perdi-me tanto em pensamentos que ainda não foi desta que visitei o Museu da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva.
Lindo passeio acabei de fazer. Obrigada.
Beijinho.