Novos Voos - Take Two

quinta-feira, novembro 24, 2005
Vazios

Tento surtidas aos meus albums de recordações, aos meus baús, que me trazem sempre lembranças esbatidas pelo tempo, mas nos últimos tempos as mãos, como se fossem independentes e incapazes, recusam-se alinhar no papel as ideias que saltam e se misturam com os aromas e sons que me foram legados como heranças inestimáveis pelos meus ancestrais.
Relembro as frescuras das manhãs outonais de domingo, em que, tomado o banho quentíssimo e vestido com carinho pela minha madrinha, assistia fascinado ao ritual do enrolar das guias do bigode do meu padrinho, e comparo a calma com que decorria aquela cerimónia, obsoleta na urgência com que decorre este hoje tão incaracterístico. Recordo como depois saíamos os dois, ele, sempre impecavelmente vestido como era da praxe naquele dia da semana, o lenço alvíssimo a saltar-lhe do bolso de cima do fato de corte irrepreensível, a camisa de colarinhos engomados e a gravata que era a única nota garrida na figura quase austera, e espalhando aquele cheiro inconfundível a violetas que lhe emprestava a loção inglesa, que, sem olhar a modas, conservou durante tantos anos.
Sabia que, se o tempo estivesse de sol, o destino era um Jardim, o da Estrela ou o Parque. Se não, era apanhar o 28, atravessar Campo de Ourique e baixar à Estrela, descer a calçada e desembocar nas Janelas Verdes, que o Museu esperava sempre por nós. Recordo que quando saíamos daquelas salas repletas de tesouros, como ele lhes chamava, parava sempre um pouco junto ao gradeamento de onde se avistava o Tejo, parecendo que assim queria levar o rio nos olhos de modo a que a visão lhe durasse até ao domingo seguinte. Como ele gostava do Tejo e de arte e de música. E conhecia todas as plantas e árvores, e todos os sítios de Lisboa onda ainda havia azulejos, e sabia quando devia plantar begónias e a que hora se punha o sol. E não sabia ler.
E é com a mesma melancolia que relembro de como fazia a minha tia cantar-me musicas sem fim antes de adormecer, e ela que nunca me dizia que não, me cantava uma após outra, com aquela voz fina e afinada, tão pouco comum em alguém que nem se apercebeu nunca que sabia cantar, e desejosa que eu adormecesse depressa antes que se lhe acabasse o reportório. Começava invariavelmente com: “Josézito já te tenho dito, que não é bonito, andares me a enganar”, mas nunca me mantive acordado o suficiente para saber como acabava. Só que no dia seguinte, sabia que tudo se repetiria.
Relembro, agora que o Natal vem aí, o roçagar dos passos da minha mãe pela sala, os pés calçados com as meias de lã para que eu não acordasse, a ida furtiva até à árvore de Natal, naquela noite mágica de 24 para 25, para aí depositar os pedidos formulados em letra trémula e infantil, numa folha de papel arrancada sem muito jeito ao caderno das cópias ou da caligrafia. Perdemos sempre aquela inocência muito mais cedo do que os pais gostariam. Desnecessariamente. Apressamos tudo na nossa vida desnecessariamente, como se houvesse uma sofreguidão inexplicável e cruel que nos faz viver a vida em meia vida.
Vou aos baús, abro um após outro, e recordo-me de tantas coisas. Mas não consigo alinhar ideias ou lembranças. Há um vazio que se impõe, imperial, ditado pela falta de vontade de escrever ou pela recusa em invocar passados que nunca recuperarei.
E faço um Ctrl+Alt+Delete de tudo

Mão
Escrito por: VdeAlmeida, em 11/24/2005 05:13:00 da tarde | Permalink | |


2 Comments:


  • At 11:53 da manhã, Blogger M.M.

    Estas viagens emocionais são fantásticas. Adorei o que escreveste, conseguiste transportar-me até lá. Recordei um texto que escrevi há uns tempos e que coloquei no meu blog, em tua homenagem.
    Um beijinho grande e partilha connosco mais dessas viagens, não te atrevas a fazer control+alt+delete! ;-)  
  • At 9:46 da tarde, Blogger VdeAlmeida

    Obrigado pelas palavras e pela lembrança, M.M. :-)
    Beijinho, semana muito feliz :-)  
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