Novos Voos - Take Two

segunda-feira, janeiro 24, 2005
Tempo

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Este tempo nebuloso temperado pela brisa leve que traz a névoa salgada de sul até à minha janela, e a ameaça a pairar de dias ainda mais gélidos de influência polar, deixam-me quase imóvel. É o tempo adequado ao remexer de braseiras que nos aqueçam as mãos e lhes permitam movimento. Parece tempo de memória, de revolver passados, de relembrar passeios. Passos que se deram sós ou com outros passos a acompanhar.
Sinto-me convidado à nostalgia. E aceito o convite mesmo que tantas vezes as recordações sejam povoadas de fantasmas, muitas vezes alados, acompanhando os meus passos.
Os passos que me levam apressados Rua do Alecrim abaixo, com as pontas dos dedos que se enfiam nos bolsos das calças leves, a recontarem as moedas necessárias para o bilhete do comboio que me há-de levar até ao paredão da marginal junto a São Pedro, onde me sento e deixo entrar – me nos pulmões aquele ar espesso de Agosto, que é mais mar que ar. Sinto ainda as pequenas gotas de suor resvalando do cabelo para as frontes, escorregando até aos olhos, incomodando-me a visão.
Os passos que me arrastam, saltitando, perigosamente ansioso a dois e dois, os degraus irregulares da Calçada do Duque, olhando com deslumbrados olhos de menino o casario da Baixa onde sei que me vou perder por ruelas sempre iguais e sempre diferentes, e onde me deixarei envolver pelos sons, os cheiros. O som do recado dado da janela do 2º andar da Rua do Arco Bandeira, do silvo agudo que chama com urgência o táxi, o sobrevivente pregão, ou o murmúrio dos namorados num vão de escada da Rua de Santa Justa. O cheiro da graxa num Largo de S. Domingos dominado pela Igreja e pela Ginjinha, dos fritos das tabernas da calçada do Carmo, da humidade que sobe do rio. Ou o das castanhas assadas nos prenúncios do Inverno.
Os passos que me arrastam avenida acima, até perto do Tivoli, onde me sento à sombra das asas largas de uma árvore, virado para o pequeno lago por onde passeiam os cisnes orgulhosos da sua prole que os segue, obediente, e para um Parque Mayer, ainda local de encontro de artistas, de nomeada ou coristas á procura de lugar de primazia, de nomes grados das letras e de uma pequena marginalidade ligada à prostituição.
Os passos que me fazem atravessar o Jardim da Estrela que, em começo de mais um Primavera solta de si, aquele cheiro adocicado a pólen, que me faz espirrar alegremente, graças ao que anuncia, e me leva a descer a Álvares Cabral, a meio da qual estaco a olhar para a fachada do velho Jardim Cinema, onde tantas tardes foram consumidas, ora no meio de um fumo quase insuportável, à volta de uma mesa de bilhar ou de matraquilhos, em disputa com outros gazeteiros do Liceu, ora na ampla e escaldante sala de cinema, sentado nas desconfortáveis cadeiras de palha a ver pela enésima vez a Ponte do Rio Kwai, com o William Holden e o Alec Guinness, ou o Rio Bravo, com o John Wayne e o Dean Martin.
Os passos detêm-se definitivamente debaixo de um dos arcos que sobrevoam o Jardim das Amoreiras e sento-me num banco de pedra junto da Mãe-d’Água. Por ali, corri de calções e joguei ao berlinde e à bola.
E olho para trás da vida.
Este, é um tempo que passando, me traz a memória. Um tempo roubado à vida sem remorso
"Quem me roubou o tempo que era um
Quem me roubou o tempo que era meu
O tempo todo inteiro que sorria
Onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
E onde por si mesmo o poema se escrevia
"
(Sophia de Mello Breyner)

Escrito por: VdeAlmeida, em 1/24/2005 06:05:00 da tarde | Permalink | |


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