Novos Voos - Take Two

sábado, setembro 04, 2004
Querido Diário - XI

Nem sei como começar a contar-vos o que se passou então na semi-escuridão das escadas da Elisa. Como disse, quando ela me puxou para dentro fê-lo com tal frenesim que quase caí no primeiro degrau. Ainda não me tinha recomposto e já ela arremetia. Saltou-me ao pescoço e quase mo partiu, que eu senti um estalo sêco. Depois, puxou-me a cabeça para ela. Nessa altura, voaram os dois botões do vestido e o wonderbra 44 surgiu em todo o seu esplendor, derramando contra mim aqueles dois hemisférios sedosos.Claro que nessa altura devia-me sentir no éden. Só que o nariz ficou entalado no estreitíssimo espaço entre as duas cabeças do Dunga e mal conseguia respirar, a dor no pescoço agravava o mal estar, a vista inflamada fazia questão de me lembrar que existia, e assim a situação tornara as escadas em catacumba de tortura de uma ditadura sul-americana. Sentia-me agonizar.
Pior ainda foi quando, alertado pelo reboliço apareceu o solícito vizinho do 2º esquerdo, o tal que é casado com a tipa que se parece com um acidente de automóvel visto de trás. E dei pela presença do sujeito, ao sentir entre as costelas flutuantes o que me pareceu um cano de espingarda, pelo que pus de imediato os braços no ar. Descansei quando me virei ligeiramente e vi que se tratava de uma vassoura. Mas fui-me abaixo quando me apercebi que ele pretendia com ela vingar-se dos agravos anteriores.
Acho que naquele momento, a minha vida toda me passou pela frente num flash e me vi do outro lado túnel. De um lado uma valquíria em ponto de rebuçado, para o que eu pouco tinha contribuído. Do outro, um homem ofendido que pretendia lavar a honra pela ponta da vassoura.
Mas nessa altura a Elisa, fula com o homenzinho que assim a privava do banquete que ela antecipara, desatou a chamar-lhe mastronço e troglodita, ao mesmo tempo que lhe sacava a vassoura das mãos. O que ela lhe disse! Até a masculinidade do sujeito foi posta em causa.
Nessa altura achei por bem aproveitar a confusão, porque ao duo já se tinha juntado a mulher do tipo, mais o bufo do filho e a tia da Elisa, e saí, escorregando suavemente por entre as roliças pernas da minha passarinha (já repararam que eu nunca falei dos vizinhos do r/c e do 1º, que desta também primaram pela ausência?). Cheio de mazelas, com o Armani a parecer um fatinho comprado na Rua dos Fanqueiros, mas sobrevivente, respirei quase aliviado quando o ar da rua me atingiu em cheio. Foi assim que subi as escadas de casa. E como o Armani já não se safava sem uma limpeza - vá lá que não apresentava danos maiores , deixei-me cair na cama e de tão cansado adormeci sem precisar de Xanax, ainda com os ecos da discussão que me vinham do outro lado da rua na cabeça. Foi uma noite de horror. E de vergonha.

Na manhã seguinte tive que chamar o meu amigo Renato pelo telefone, para me ajudar a ir até ao posto de enfermagem porque não me conseguia desenrascar sózinho.
O Renato é um bom amigo, embora tenha uns hábitos peculiares. Ele mora num pátio da rua de baixo com a mãe, que tem um lugar de fruta na praça da Ribeira e também vende galinha caseira ali na vizinhança. Há uns tempos encontrei-o a sair de uma escada que nem sequer era da casa dele. Trazia uma galinha debraçada. Achei aquilo bizarro, ri-me e disse-lhe
- Olá, Renato. Então? vais comer a galinha?
- Não, já a comi. Agora vou-a pôr outra vez no galinheiro, não vá a minha mãe dar-lhe pela falta.
Confesso que fiquei de boca aberta e sem poder de reacção durante vários minutos, além de que andei uns meses sem conseguir comer galinha, frango ou outro qualquer animal de penas.

Mas lá fui com o Renato, que me ajudou a vestir uma camisa lavada e o casaco - ainda não recuperei nele a confiança suficiente para o permitir ajudar no vestir das calças - além de que o que mais me custava a mexer era o pescoço.
Quando saí do posto, vinha numa figura estranha. tanto que quando me vi ao espelho ia caindo: com um penso na vista e uma coleira ortopédica, nem me reconheci.
E o estúpido do Renato começou a chamar-me Luís Vaz!

Só me suavizou as dores o bilhetinho da minha canária a desejar-me as melhoras e a convidar-me para novo jantar na próxima semana, mas já a avisei que primeiro tinha que deixar a coleira, depois, que temos que ir a outro restaurante. Além disso obriguei-a a prometer que não cantava à sobremesa, porque, disse-lhe eu, uma artista daquele calibre não podia desperdiçar o talento em récitas beneméritas e ainda por cima, para non connaisseurs. Não apreciou a palavra, mas eu expliquei-lha.

Andei uma semana naquela figura, portanto já sabem o porquê da minha relutância em vos relatar coisas pouco lisongeiras, ninguém gosta de ir à caça e vir de lá chamuscado pelas cartuchadas de uma caçadeira, e foi assim que me senti. Nem imaginam as vergonhas que tenho passado! Até decidi fazer uma pausa nas minhas idas ao café 33. É que se murmuram muitas coisas à minha passagem e algumas já me chegaram aos ouvidos. Isso, e as novos ensaios da minha Callas que muito têm dado que falar, mas isso fica para a próxima

E agora já me ando a preparar para a próxima e nem pensar em levar o Armani. Vou de jeans e preparado psicologicamente para ser eu a tomar iniciativas.

Escrito por: VdeAlmeida, em 9/04/2004 05:07:00 da tarde | Permalink | |


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