Novos Voos - Take Two

segunda-feira, setembro 20, 2004
Os moinhos já não existem

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Agarro-lhe a mão com suavidade, pareço recear magoar-lha, tão pequena me parece na minha. Tem, como habitualmente, a face afogueada e um pingo de transpiração humedece-lhe os cabelos alourados cortados curtos. Os olhos, esses são sempre inquisidores. Como brasas. Perguntam-me muito em silêncio. Por vezes, dá-lhes voz.
Respondo-lhe como posso, quando posso. E são tantas as vezes que emudeço, pesaroso por não poder ser assertivo.

"Pareceu-me totalmente inconcebível que alguém fosse confrontado com uma tal imponência e não ficasse esmagado pela sua beleza; contudo, segundo Keneth ClarcK quase nenhum visitante dos Alpes anterior ao séc.XVIII chamou a atenção para a paisagem. Actualmente, como é óbvio, o problema é inverso. 50 milhões de turistas atropelam-se anualmente pelos Alpes, maravilhando-se e espoliando simultâneamente a suabeleza. Toda a construção associada a estâncias turìsticas, hotéis, lojas, restaurantes, casas de férias, pistas de ski, teleféricos e novas auto-estradas não só está a alterar irremediavelmente a face dos Alpes como também a minar as suas fundações. Em 1987, a apenas alguns quilómetros para leste do lugar onde eu agora passava, morreram 70 pessoas quando uma inundação súbita avançou sobre o vale Valtellina, varrendo casas e hotéis, como se fossem caixas de fósforos à frente de uma vassoura. No mesmo Verão morreram 30 pessoas numa avalancha em Annecy, na França. Se as encostas das montanhas não tivessem sido despojadas de árvores para novos alojamentos e estâncias, nenhuma daquelas catástrofes teria tido lugar".
Bill Bryson, in "Nem Aqui, Nem Ali".

Amiúde, sinto uma satisfação sofrível por ainda não se aperceber da imensidão de pequenos infernos que vão ardendo à sua volta e por as suas dúvidas se resumirem ainda às coisas mais simples. Mas sei que as perguntas, com a idade, se irão tornando cada vez mais embaraçantes. E as respostas, ainda mais difíceis.

"Os moinhos já não existem, mas o vento continua a ser o mesmo" Vincent Van Gogh em carta a seu irmão Theo

"Os nazis marcavam com números a pele dos judeus, hoje, os judeus marcam com números a pele dos palestinianos, e embora um oficial do exército de Israel afirme que "estes números se podem apagar", estamos a assistir à mesma preversão, e as nações, sobretudo a Europa, contemplam isso, com a mesma passividade com que outrora foi permitido o holocausto".
Luis Sepúlveda, in "Uma História Suja"

Pior que tudo, é que, quando ele tomar consciência da realidade em toda a sua amplitude, sei que me vou sentir inapelavelmente envergonhado por fazer parte destas gerações agora adultas, mas inertes, silentes e comodistas, que continuam a deixar na mão de uns quantos burocratas inescrupulosos e em muitos casos corruptos e traficantes, a decisão de um futuro que devia ser moldado pelas nossas mãos.
Sim, temo a chegada do dia em que ele me perguntará:

Mas afinal, que mundo me deixas tu?

Arte fotográfica daqui

Escrito por: VdeAlmeida, em 9/20/2004 08:25:00 da tarde | Permalink | |


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