Novos Voos - Take Two

domingo, maio 23, 2004
O Filho


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Foto de "O Quarto do Filho", de Nanni Moretti


Conheci Q uns anos atrás.
O episódio que a seguir relato é real e fielmente traçado e foi determinante nas relações de que posteriormente tenho mantido com ele.
É um homem robusto, sereno,curtido pela vida que raramente o facilitou. Recatado, aos poucos foi-me dando conta de pequenos azulejos da sua vida e com eles fui compondo um puzzle, se não complicado, pelo menos forte de emoções.
Na infância guardou cabras nos pastos dos arredores de Lamego, e mesmo nos invernos rigorosos em que a neve cobria de branco o verde e os animais tinham que fuçar fundo para o encontrar, nunca Q soube o que era um par de sapatos. Protegia-se do frio cortante com uns socos grosseiros.
Depois veio para Lisboa, para melhorar a vida, diz-me. Trabalhou nas obras até ser chamado a cumprir o serviço militar, que então, em plena guerra colonial, o mandou para Moçambique. Por cá, ficava uma noiva, com a qual nunca casou, grávida de um filho.
Voltou depois do 25 de Abril, com um casamento (outra mulher) á beira da ruptura, que lhe deu mais duas filhas.
Por essa altura conheceu pessoalmente o filho que por cá tinha deixado e que breve verificou que iria ser para ele fonte de grandes preocupações. O rapaz tornou-se toxicodependente, arrastando-se para aquela pequena marginalidade inerente a quase todos os que caiem nesta situação: começam com as pequenas mentiras, os pequenos roubos, que de esporádicos rapidamente se transformam em recorrentes. Depois, o habitual rosário de delitos, a queda a pique, a completa degradação física e moral.
Q , como a maioria dos pais em semelhante situação, foi condescendendo, mas a sua flexibilidade não durou muito tempo, e acabou por cortar relações com o filho, proibindo-o o acesso a sua casa, sob pena de um dia a encontrar vazia. Foi um corte radical, próprio dele que sempre me pareceu algo inflexivel em questões de princípio, e parecia que para ele aquele filho deixara de existir. Quando lho referiam cortava a conversa de forma radical.
Foi assim durante muitos anos e foi nesse periodo que o conheci.
Um dia recebeu um telefonema no emprego. Falou com o seu responsável directo, a quem comunicou que a polícia o tinha convocado para ir à morgue, pelo que tinha que se lá apresentar.
Só voltou 6 dias depois. Explicou então em breves palavras, secas, que a sua comparência naquele local tinha tido como finalidade identificar o corpo do filho, morto de overdose e que permanecia sem identificação há três dias, estando prestes a ser atirado para uma vala comum como qualquer outro indigente. Como chegaram a Q, não o sei.

Em qualquer lado há sempre daquelas pessoas para as quais a sensibilidade é uma palavra co pouco significado. Eis o breve diálogo que se seguiu entre uma dessas pessoas e Q:
-Bem, até foi melhor assim. Para ele e para ti. Evita-te mais chatices, não é?
-Não, não é. Apesar de tudo o que possas pensar, foi o pior de tudo. É que ele era meu filho.
E voltou as costas com as lágrimas nos olhos.
Naquela altura, algo de superior a todos os desgostos que aquele ser lhe tinha causado se sobrepunha: o amor paternal.
Que cegueira a do outro, pretender que alguma vez a morte de um filho pudesse ser um alívio.

Q, segue a sua vida com uma placidez que conheço em poucas pessoas. Mas aquela sombra ficará para sempre a ensombrar-lhe o coração.

Escrito por: VdeAlmeida, em 5/23/2004 02:00:00 da tarde | Permalink | |


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