Novos Voos - Take Two

terça-feira, maio 18, 2004
38º42' de Latitude Norte


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Estou sentado no ponto exacto onde a falésia, abatendo-se a pique, me deixa o vácuo no qual balanço os pés descalços. Sofro a vertigem, mas o perigo parece atrair, o sangue corre mais rápido, talvez seja aquela busca inconsciente da voragem, do abismo.
Estou pois aqui, onde poisa a gaivota que espia com olhos agudos o mar que lhe fornece a vida.
Mas sei que só nas asas do sonho se voa de forma consistente, contudo sem possibilidades de deixarmos o nosso espaço material. Portanto,sei também que não devo tentar voar agora.

Há muito que deixei as minhas asas de pássaro, que acredito um dia todos tivemos e perdemos porque não podemos viver livres todo o tempo. De anjo acho que nunca as tive, embora a essas, as de anjo, as tivesse sentido roçagar por mim algumas vezes, mas não eram minhas. Talvez as do meu anjo, aquele que acredito que todos temos, e que senta descansado mas alerta, bem perto da nossa alma.
Porque será que só falamos nele quando somos miudos, como se só as crianças na sua inocência mereçam ser protegidas? Nada de menos verdadeiro, uma vez que me parece que à medida que vamos avançando na idade, mais vulneráveis e indefesos vamos ficando. Por vezes não entendo as nossas dificuldades em nos apercebermos das nossas fragilidades.
Vem-me então à ideia uma parte da Canção da Infância, de Peter Handke, nas Asas do Desejo

"When the child was a child,
It was the time for these questions:
Why am I me, and why not you?
Why am I here, and why not there?
When did time begin, and where does space end?
Is life under the sun not just a dream?
Is what I see and hear and smell
not just an illusion of a world before the world?
Given the facts of evil and people.
does evil really exist?
How can it be that I, who I am,
didn’t exist before I came to be,
and that, someday, I, who I am,
will no longer be who I am?"

O meu, sinto-o, deve ser parecido com o Damiel, de Wenders, deve sentir interesse nas emoções, nos sentimentos humanos, imagino que um dia, como Damiel, se quererá tornar humano para poder senti-las todas na sua plenitude, para se poder apaixonar, para poder sofrer. Como pode alguém, mesmo divino, mesmo anjo, entender a paixão, a dor, sem a viver?
O dia está luminoso, faziam-me falta estes salpicos que saltam das rochas trazidos pela suave força do mar e pelo vento, fraco mas insistente. Ali, apesar do dia sereno, aquela mole líquida faz-nos recordar a cada instante a sua ameaça. E como é ténue a minha força, comparada à dela. Ali em baixo, o mar ruge monstruosamente, talvez por tal facto chamaram ao lugar, a entrada do Inferno. Sinto a humidade transpirada pela rocha irregular e levanto-me ligeiramente para olhar para o outro lado do mar, que nunca como hoje me pareceu tão vasto com aquela linha curva lá no fundo e o resto um imenso reflexo solar. Ao redor só se ouve o insistente protesto das gaivotas, e o seu bater de asas vigoroso, outra vez o voo a intrometer-se-me na prosa imaginada porque vai incipientemente tomando forma na minha cabeça. Da qual a envolvência, esmagadora, não me deixa tomar rédeas, não consigo abstrair-me de tudo aquilo e concentrar-me em alguma coisa que não seja a procura de mais pequenos pormenores, imateriais alguns, que me deixam com aquela vontade imensa de ali voltar, para sorver em sucessivos olhares tudo o que ali, magnificamente me envolve, parecendo fazer com que eu próprio faça parte da imagem retida. A verdade é que me quero ver a mim próprio pintado na paisagem, quero-me olhar como se estivesse fora de mim.
Lembro-me de Damiel novamente. Outro semelhante a ele estará ali agora por perto, vigiando-me. Gostava de fazer a viagem em reverso. Interrogo-me sobre como seria eu no papel de anjo, como veria eu o resto do mundo, como veria eu, como sentiria eu a humanidade na sua trágica vivência.


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Escrito por: VdeAlmeida, em 5/18/2004 08:24:00 da tarde | Permalink | |


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