Novos Voos - Take Two

sábado, setembro 30, 2006
A vida como ela é - II
0000000000 anne bertino


Campo de Ourique não é um dédalo de ruelas estreitas e tortuosas onde o menos precavido estranho se perde, como Alfama, até porque a origem cronológica de cada um é bem diversa e assim se entende a sua aparente organização, com ruas mais largas e quase rectilíneas. Aparentemente, dá a entender tratar-se de um bairro pequeno-burguês e assim é.
No entanto, e para quem seja mais atento, sabe que o operariado tem nele uma presença bem vincada, mormente na quantidade assinalável de pátios que o juncam, pátios que são autênticas colmeias de paredes tão finas, que a vizinhança breve se torna família, e a convivência tem, por vezes, muito de promíscuo. Era num desses microcosmos que vivia Júlia, desde pequena criada por uma tia com pouco mais idade que ela, e que a tomara a seu cargo quando a sua meia-irmã, mãe da rapariga, se perdera na vida.
Quando a conheceu, Carlos surpreendeu-se com as diferenças tão vincadas entre duas familiares tão próximas. Predominando em Júlia uma aparência de fragilidade, fruto da sua feminilidade requintada, do corpo esguio e das feições perfeitas, em Aurora assentava um vigor que lhe vinha do pai, um rústico jardineiro do Midi, que viera fazer um jardim numa mansão de rico, mas que aproveitara para deixar semente num ventre de pobre. O que uma tinha de etéreo, a outra possuía de animal. Uma apelava à carícia, á adoração. Da outra ressumia o apelo da fêmea no cio.
Todo o ser humano tem fraquezas, vícios, defeitos, que ninguém conhece melhor que o próprio. A alguns, consegue-se corrigir, erradicar, ou, pelo menos, controlar. Mas como o escorpião fez com a rã que o atravessava para o outro lado do rio, ninguém consegue ir contra a sua índole. E Carlos já nem sequer o tentava. Sabia que a sua carne falava muitas vezes mais alto do que aquilo que a prudência lhe ditava, mas sabia de antemão que era difícil resistir-lhe.
Fora assim com Aurora. Os seus olhos, tão negros como os cabelos, a sua boca grossa e o queixo levantado, os seios empinados e as coxas largas, despertaram-lhe os seus instintos mais primitivos. Vestia modestamente, e servia-se de cores austeras, mas a saia, fina e solta que lhe percorria fielmente as ancas e caía, marcando-lhe a separação das nádegas redondas, era mais um acha para a fogueira em que Carlos já ardia há uns minutos.
Nessa altura, já ele se dividia entre o sacro e o profano

Escrito por: VdeAlmeida, em 9/30/2006 07:21:00 da tarde | Permalink | | ( 1)Comentários
quarta-feira, setembro 13, 2006
A vida como ela é - I
Démodée Claude B. Tenot

Tantas vezes se sentira tentado a cruzar aquela porta velha, e subir os degraus esconsos que o levariam ao salão vasto e gasto, e outras tantas recusara a tentação. Adivinhava-lhe o ambiente, semelhante ao das antigas milongas de Buenos Aires, onde se dançava o tango ao som roufenho dos velhos 78 rotações de Gardel,e o cheiro de tabaco ordinário e suor se disfarçava com perfume barato, tornando o ar quase nauseantemente irrespirável. Mas sobretudo, sabia que aquilo lhe iria reavivar as origens que ele tanto fazia por esquecer.
E no entanto, quer a barba cerrada, que apesar de impecavelmente barbeada lhe emprestava uma tonalidade quase cinza à pele morena da cara, quer o cabelo negro esticado para trás à força de fixador ou os olhos escuros, eram como que um estigma denunciador da sua latinidade, mesmo que não declinasse o seu apelido, Montoya.
Naquela noite porém, algo o empurrara pelas escadas acima. “É o destino”, pensara. E a dois e dois subiu os degraus que o haveriam de levar a uma guinada na sua vida, que nunca previra e que o marcaria para sempre. Inapelavelmente.
Quando entrou na sala pouca coisa era diversa do que imaginara, e mesmo a escada cheirava a humidade e a gatos conforme o previsto. O recinto era quadrado com o soalho gasto pelos anos, e no centro onde se concentravam os pares de bailarinos, apresentava mesmo um desgaste maior, alarmantemente perceptível.
Ao fundo, aglomeradas num canto estratégico, um grupo de mulheres idosas vestidas de escuro que lhe lembraram as carpideiras de um funeral de outros tempos, fiscalizavam os movimentos corporais das suas mais ou menos jovens familiares que desfilavam nos braços de machos, tímidos uns, atrevidos outros, mas quaisquer deles perigos latentes para as suas protégées. No canto oposto um tipo gordo e suado, manejava um gira-discos desafinado, e a música era a de sempre naquele tipo de colectividades: tangos, paso-dobles, qualquer coisa que desse para manter os pares agarrados, e interrompida aqui e ali, estrategicamente de modo a dar que fazer ao ensonado empregado do bar.
O seu olhar. que percorria o ambiente de modo distraído, fixou-se na mancha arroxeada que descansava num colo de mulher. Era um pequeno bouquet de violetas e seguravam-no umas minúsculas mãos, invulgarmente elegantes. Notava-se o cuidado extremo com que a sua possuidora as tratava. “São a minha única vaidade”, dissera-lhe ela uns tempos depois. Os olhos dele foram subindo, e deram com um rosto muito jovem, atraente, quase bela. Era de um tipo nórdico pouco comum, e, ao contrário da maioria das frequentadoras, trazia uma maquilhagem muito ligeira. Aliás, a quem atentasse com cuidado, parecer-lhe-ia ela, de tão leve, uma nota deslocada no ambiente pesado e de cores fortes.
Naqueles instantes, cruzaram-se os olhares e o dela também se deteve nele. “Era diferente, elegante, mas quase severo”, dissera-lhe. Disso, ele tinha consciência. Era bem proporcionado, e embora o dinheiro não abundasse, apresentava-se sempre vestido de modo elegante nunca excessivo, e as únicas notas mais coloridas na figura, eram as da gravata e do lenço a condizer que lhe saía do bolso superior do casaco.
Nunca se imaginara a dançar ali, mas não conseguiu resistir à tentação de sentir aquela estranha nos seus braços, e viu-se a caminhar para ela quase sem pensar. Fez-lhe um pequeno sinal e ela levantou-se com um sorriso tímido. Momentos depois, ele sentiu a macieza das suas mãos e o seu perfume discreto. Também a leveza do seu corpo e do cabelo que lhe roçava a cara. Tudo conjugado com uma precisão letal, bastante para lhe fazer disparar os instintos mais primários.
Foi deste modo que Carlos, sentado a meu lado no banco corrido de uma taberna obscura de Campo de Ourique, me relatou os primeiros momentos da sua relação com Júlia.
(continua...)
Foto de Claude B. Tenot

Escrito por: VdeAlmeida, em 9/13/2006 09:25:00 da tarde | Permalink | | ( 5)Comentários
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