Depois do episódio do ribeiro, a Marília tornou-se no alvo preferencial dos meus sonhos juvenis. Mesmo que na manhã seguinte não me lembrasse do trama nocturno, a natureza encarregava-se de me fazer notar que as fantasias não tinham nada de etéreo.
Continuámos a ver-nos até ao fim das férias, mas de cada vez que se sucedia o encontro, desviava o olhar envergonhado. Parecia receoso que me conseguisse ler os pensamentos, ou que descobrisse que sonhava indecentemente com ela. À distância, não consigo descobrir o porquê de todo aquele meu estranho e insensato embaraço.
Foi com algum alívio que voltei à cidade e recomecei as aulas. Pensava eu que teria muito para me ocupar. Puro engano. Os sonhos continuavam com a mesma interveniente.
Marília era órfã de mãe e o pai seguira o caminho de muitos outros, a França, deixando-a aos cuidados da avó. Esta não se preocupava muito com ela, deixava-a correr livre, e assim ela, que já de si tinha um espírito independente, quase selvagem, foi crescendo sem constrangimentos nem grandes pudores, apesar do ambiente retrógrado em que vivia. Cá longe sabia pouco da sua vida, não queria denunciar o meu interesse especial nela, mas soube um dia que o pai, com a morte da velhota a tinha levado com ele.
Supus então que não mais a veria. Foi por essa época que a sua imagem se começou a esbater na minha memória até quase se transformar numa velha fotografia a sépia, muito debotada, das suas feições quase só uns vagos contornos.
Até que um dia voltando à aldeia, a reencontrei. Acho que quando a encarei todo o meu sangue me afluíu ás faces. Beijou-me suavemente, o que me deixou ainda mais acanhado. Tinha-se transformado numa adolescente muito bonita, os seios já não eram incipientes, as pernas eram perfeitas e os olhos continuavam a ser aqueles olhos-vitrais de cor indefinida que filtravam emoções como o cristal separa as cores em arco-íris. E depois, aquela boca sempre muito vermelha e molhada por uma língua que parecia não ter sossego...
Nesse ano criámos alguma intimidade, notava que lhe não era indiferente, mas havia da minha parte, uma quase inconsciente vontade de não estar a sós com ela, talvez adiando o que adivinhava seria inevitável.
Já lhe notara alguma estranheza e até irritação por esse meu cuidado, e nesse dia não quis continuar aquele jogo. Aceitei um desafio dela e saímos para o campo. Falávamos de tudo e de nada e quando abandonámos a estrada para seguir por um caminho velho, pedregoso, pegou-me na mão como que para se segurar. Parecia mais leve que habitualmente, ria deixando ver os dentes branquíssimos, bonitos e muito alinhados e atirando a cabeça para trás o que lhe fazia ondular os longos cabelos de reflexos acobreados. Trazia um vestido justo, claro, quase branco, que lhe emprestava um ar angelical.
Sentámo-nos numa fraga e de repente gerou-se entre nós um silêncio estranho. Disse-me então:
- Sempre gostei de ti, mas tu sempre fugiste. Meto-te medo?
- Nunca dei por isso, deve ser inconsciente,- respondi-lhe corando por saber que não era verdade. Nem coragem tive para lhe dizer que também eu há muito gostava dela.- Mas não, não sinto medo. De ti ou contigo.
- Eu sei o que receias, mas comigo não há cobranças, não há compromissos. Gosto e pronto.
Fiquei sem saber bem o que lhe responder, até porque me parecia que nem percebia bem a profundidade do que me dizia.
Pegou-me na mão e puxou-me para o meio de um campo de girassóis, altos, enormes, que havia ali mesmo ao lado.
- Já reparaste? Aqui no meio, se nos deitarmos por cima das folhas velhas que cobrem o chão, mesmo que passe alguém, não nos vê. E deixou-se cair arrastando-me. Agarrou-se a mim e de repente, caído de costas, com os cabelos dela a taparem-me quase por completo a cara, só por breves nesgas divisava o azul do céu. E sentia a sua língua que, ora quase forçava a sua entrada na minha boca, ora me molhava os ouvidos como se me sussurrasse palavras húmidas de desejo. Aquela boca sabia a morangos silvestres.
A textura da pele, já lha conhecia. Dos sonhos. Tinha-lhe adivinhado a suavidade do veludo. Não usava perfumes, tinha um cheiro a lavado de fresco, perturbador, que me despertava todos os instintos mais primários. Num ímpeto puxou-me uma das mão para a tepidez húmida que se escondia por baixo do algodão fresco das cuecas. Depois, já não me recordo de mais nada...Só sei que reparei que não era o primeiro homem da vida dela, coisa a que não dei qualquer importância.
Nos dias sequentes, pelo meio de brincadeiras mais ou menos inocentes, aprendi muito com ela. Eu, adolescente de cidade, estudante, cheio de verdades muito minhas que tinha tornado quase dogmas, vi muitas certezas cairem por terra perante a sua simplicidade cortante, afiada quase como a lâmina que corta o pulso. Mostrou-me que, nessa altura, a distância que ia de Lisboa á aldeia, era muito menor do que aquela que ia de Paris a Lisboa. Isso disse-me ela quando lhe aflorei a questão da virgindade perdida. E houve muito mais, mas isso fica para a próxima.
Por hoje, só que ainda estremeço violentamente quando passo por algum campo de girasssóis
Fever
You give me
You give me fever
Never know how much I love you
Never know how much I care
When you put your arms around me
I get a fever that’s so hard to bear
Listen to me baby, hear every word I say
No one can love you the way I do
’cause they don’t know how to love you my way
(Peggy Lee)