A fagulha que deu origem à implosão daquela célula semi-familiar, saltou numa tarde ardente de Agosto, daquelas tardes em que a simples aproximação de dois corpos pode fazer grassar uma fogueira que a ambos consumirá.
Carlos ainda hoje se interroga intimamente, se, de forma inconsciente, não terá ele provocado o encontro. Não iria encontrar Julia em casa. Sabia-o, ela avisara-o, mas ele estranhamente omitira a si próprio a informação. A rapariga, modesta costureira mas talentosa, tanto que o patrão, um dos melhores alfaiates da capital, a remunerava acima da média, iria entregar alguns pares de calças acabadas de executar, e no entanto, apesar da ausência anunciada, ele, às 3 da tarde como o habitual, batia à porta do nº 10 do estreito pátio.
Conforme o esperado, franqueou-lhe a entrada Aurora, que usava um vestido leve que lhe acentuava as curvas que ele tanto apreciava. O peito que parecia saltar do decote, mexia sempre com ele. Entrou dando-lhe saudando-a timidamente, respondendo-lhe ela, esboçando um sorriso mas quase sem o olhar. E enquanto ele se sentava na cadeira oferecida, ela voltou-lhe as costas e debruçou-se para apanhar algo que ele não conseguiu vislumbrar o que seria. O que soube logo foi que aquela perspectiva das suas ancas proporcionadas, a saia que com a inclinação do corpo, subia e lhe deixava à vista as coxas morenas, era uma tentação que não conseguia negar. E, apesar de vagamente constrangido, chegou-se a ela e pousou-lhe as mãos pela altura dos rins. Sabia que ali chegado, o difícil seria recuar, mas não tinha tal intenção. Sabiam ambos que tinham aguardado por aquele momento desde que se tinham visto pela primeira vez. Tinham pois a ocasião e o tempo que procuravam, e ela, quase sem trocarem palavra, deixou-se cair de costas sobre a mesa, erguendo as pernas, e fincando os calcanhares nos rebordos, puxou-o a si.
Diz-me Carlos que não sabe quanto tempo demorou aquele confronto quase animal, se breves segundos, se muitos minutos como parecia denunciar o suor que lhe escorria por todo o corpo, quando se compôs e saiu a porta. Cá fora, aguardava-o o ar quente, que mais contribuiu para lhe adensar o mal estar que sentia. Carlos, embora no que diz respeito àqueles pecadilhos, como lhe chamava, não fosse muito escrupuloso, sentiu que dessa vez tinha extravasado. Ele, a quem circunstâncias semelhantes serviriam para elevar o ego de macho, nesse dia sentiu pela primeira vez sobre si, o adensar de um sentimento de culpa e um imediato remorso. Não por ele ou por Aurora, que como adivinhara há muito, levara o facto como a simples satisfação de uma necessidade física, mas pela ausente Julia. Sabia que a rapariga há muito que deixara de ser para ele só mais uma conquista, e que para ela, ele que sempre dissimulara bem as suas fraquezas, era o príncipe perfeito.
Apreensivo, voltou para casa, esperando que a noite lhe trouxesse paz, mas ao contrário, subsistiu a insónia. A serenidade que aquela relação parecia transmitir-lhe a princípio, tornara-se, com o cruzar de paixões, numa fonte inesperada de inquietação que lhe era totalmente estranha.
Até então, a sua vida decorrera sem sobressaltos, fugia a compromissos, e os seus namoros, se assim lhes podia chamar, eram fortuitos e breves e agora sentia que tudo aquilo ia contra tudo o que sempre determinara para si.
E se a noite não foi boa companhia, temia ainda mais o dia seguinte
Foto de Kasia Krynska