Novos Voos - Take Two

segunda-feira, maio 10, 2004
Mar meu


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O mar está como eu, translúcido, quase opaco. Escuro. Nem o sol fugidio, quando surge, o consegue penetrar e tornar plácido. Agita-se como se uma descomunal colher o mexesse sem cessar.
Passeio-lhe pela orla, por aquele rendilhado que vai deixando na areia. Sinto-lhe o cheiro forte, abro as narinas e encho o peito como se quisesse aquela maresia só para mim. Sigo as pequenas pegadas das gaivotas e dos albatrozes. Nem a minha aproximação os faz levantar voo. Parecem reconhecer-me, sabem-me amigo. Acho que é o instinto daquelas aves. Sentem que para mim aquele recanto não seria o mesmo sem a sua companhia.
Decido atrever-me a tirar os sapatos e deixar a água abraçar-me os tornozelos. Os ossos quase estalam com aquele gélido enlace. A dor penetra e eleva-se, desperta-me, tem um poder maior que uma injecção de cafeína despejada directamente na veia.
Sento-me numa rocha e deixo-me ficar. Imóvel, como se fosse parte do mineral que me serve de apoio. Olho o horizonte que quase não se divisa porque a cor do céu se confunde com a do oceano, um cinzento quase negro, ameaçador.
Começam a cair os primeiros pingos de chuva, eram esperados. Nem eles me fazem levantar dali. Queria ficar para sempre, parecia que me queria o destino da mulher de Lot, transformar-me, não em sal, mas em pedra, não sair mais dali, morrer abraçado àquele mar-mulher, um mar-amante em que nunca confiarei, mas que também não me engana porque já sei que é aquela a sua índole.
Não posso ficar mais tempo. Afinal, o tempo urge. Os meus minutos são contados.
Voltarei amanhã. Talvez então decida não resistir àquele apelo tão forte e ficar com ele para sempre.

"As ondas quebraram uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim
"
-Sophia de Mello Breyner Andersen-

Escrito por: VdeAlmeida, em 5/10/2004 01:45:00 da tarde | Permalink | |


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